17 de set. de 2017

A fórmula para conquistar o Céu

Ser como criança...

A invenção do balão, no ano de 1793, foi um acontecimento mundial. Era quase impossível acreditar que um objeto de tal tamanho pudesse vencer a implacável lei da gravidade, voando sem amarras, peregrinando pelos ares, permitindo contemplar panoramas desde alturas inimagináveis… Sim, até lá conseguiu chegar o engenho humano! Ora, tudo na Criação tem uma finalidade, não somente material, mas também no plano espiritual e simbólico, pois o Universo saiu das mãos de um único Ser, infinitamente inteligente e perfeito. Não era possível existirem essas leis sem que contivessem sábias analogias em relação a criaturas superiores.

Com efeito, a tendência de os objetos caírem talvez seja uma imagem desejada por Deus, para dar a entender ao homem o quanto a sua natureza, depois do Pecado Original, tornou-se propensa à queda: “à semelhança de nosso corpo, padecem as almas de uma espécie de lei da gravidade espiritual por onde nos sentimos atraídos para o mais baixo, o mais trivial, o que nos exige menos esforço”.[1]

Por outro lado, a mencionada lei física capaz de vencer a gravidade, também é imagem de uma realidade superior, a qual foi dada a conhecer aos homens muito antes do descobrimento do balão. Nosso Senhor Jesus Cristo foi o grande “descobridor”, ou melhor, o portador de uma nova lei, capaz de retirar-nos do abismo ao qual o pecado nos atirara: a Lei da Graça.[2] Ela é capaz de elevar as almas a altitudes inatingíveis pelo esforço natural, fazendo-as ganhar a batalha contra as inclinações que continuamente as arrastam para o mal.

A Graça é o remédio apropriado para corrigir em nós o desregramento das paixões, sobretudo a “concupiscência da carne” (1 Jo 2, 16), a qual leva a humanidade a ofender a Deus com maior frequência. Cristo veio consagrando dois caminhos que regulam a veemência desse instinto: o Sacramento do Matrimônio e a castidade consagrada. Em relação à segunda, o Divino Mestre afirmou ser um estado de vida reservado para poucos e, assim, nem todos conseguem compreendê-lo, “mas somente aqueles a quem é concedido” (Mt 19, 11). Os que o abraçam “por amor do Reino dos Céus” (Mt 19, 12), prenunciam nesta Terra a Bem-aventurança celeste, por isso, esse estado recebe o nome de celibato, termo que visa expressar certa participação na felicidade do Céu, segundo a etimologia dada pelo historiador romano Julius Valerianus: caeli beatus.[3] 

A virtude da castidade visa reprimir “tudo quanto há de desordenado nos prazeres voluptuosos”,[4] os quais são moralmente ilícitos quando buscados por si mesmos,[5] porque eles só existem com vistas a um fim principal: “perpetuar a raça humana, transmitindo a vida pelo uso legítimo do matrimônio. Fora dele, toda luxúria é estritamente proibida”.[6] Ora, a vocação para a castidade consagrada pede uma doação completa, através desse “vínculo sagrado”,[7] o religioso entrega a Deus o corpo com todas as suas faculdades, oferece-se em holocausto,[8] renuncia por amor às leis da carne e vencendo-as com o auxílio da divina Graça.

Essa sublimação da natureza humana é incomparavelmente superior ao voo de um balão. A castidade perfeita faz voar pelos horizontes da vida sobrenatural, causando incompreensão em muitas pessoas não chamadas a vivê-la, as quais podem se perguntar: “como é possível a uma natureza tão material e débil elevar-se a essas altitudes da espiritualidade, livrar-se das amarras da carne e preocupar-se apenas com a contemplação dos sagrados panoramas da Religião?”. O Divino Mestre é quem lhes dá a resposta: “Quem puder compreender, compreenda” (Mt 19, 12).

O Apóstolo São Paulo também defendeu claramente o “dom divino”[9] da castidade, pois – conforme disse – “os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as suas paixões e concupiscências” (Gl 5, 24). Escrevendo aos de Corinto, afirmava: “A respeito das pessoas virgens, não tenho mandamento do Senhor; porém, dou o meu conselho, como homem que recebeu da misericórdia do Senhor a graça de ser digno de confiança. […] Quisera ver-vos livres de toda preocupação. O solteiro cuida das coisas que são do Senhor, de como agradar ao Senhor. O casado preocupa-se com as coisas do mundo, procurando agradar à sua esposa. A mesma diferença existe com a mulher solteira ou a virgem. […] Digo isto para vosso proveito, […] para vos ensinar o que melhor convém, o que vos poderá unir ao Senhor sem partilha. […] E creio que também eu tenho o Espírito de Deus” (1 Cor 7, 25. 32-34. 35. 40).
Como conservar a castidade?

Conseguir o domínio de si requer uma existência inteira e “nunca poderá considerar-se total e definitivamente adquirido. Implica um esforço constantemente retomado, em todas as idades da vida (Cf. Tt 2, 1-6). O esforço requerido pode ser mais intenso em certas épocas, como quando se forma a personalidade, durante a infância e a adolescência”,[10] sendo que a vitória se encontra na conquista do coração, pois é nele onde pode nascer a impureza (Cf. Mt 5, 28; 15, 19). Em realidade, a luta para conservar a castidade é travada principalmente no interior. O Evangelho proclama bem-aventurados “os puros de coração” (Mt 5, 8), ou seja, aqueles que transformaram a sua mentalidade e o seu querer, a fim de se adaptarem às exigências da própria vocação,[11] abandonando os hábitos censuráveis daquele que “têm o entendimento obscurecido, e cuja ignorância e endurecimento de coração mantêm-nos afastados da vida de Deus; indolentes, entregam-se à devassidão, à prática apaixonada de toda espécie de impureza” (Ef 4, 18-19).

A pureza é como um valioso objeto de cristal, muito delicado, o qual deve ser carregado com extremo cuidado, para poder conservá-lo intacto. Inúmeros recursos naturais e sobrenaturais existem ao nosso alcance, com vistas a resguardar a virtude angélica.

Que façamos jus ao Divino conselho de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus." São Mateus (18,3).

[1] Clá Dias, João Scognamiglio. “Voar sem amarras!”. In: Arautos do Evangelho. São Paulo: Abril, n. 105, set. 2010, p. 10.
[2] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. I-II, q. 106, a. 1 e 2.
[3] Cf. Bautista Torelló, Joan. Scripta Theologica 27. Navarra: Universidade de Navarra, 1995, p. 282.
[4] Tanquerey, Adolphe. Compendio de Teología Ascética y Mística. Tradução de Daniel García Huches. Bélgica: Desclée, 1960, p. 707.
[5] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 2351.
[6] Tanquerey. Op. Cit., p. 707.
[7] João Paulo ii. Vita consecrata. n. 14.
[8] Cf. São Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, q. 186, a. 1.
[9] Catecismo da Igreja Católica. n. 2260.
[10] Catecismo da Igreja Católica. n. 2342.

[11] Cf. Catecismo da Igreja Católica. n. 2517.


4 de set. de 2017

O mar da vida humana

Lua crescente, por Montague Dawson
Coleção particular
A diversidade de “naus” humanas que singram o oceano desta vida é assombrosa. Porém, após analisar tão diferentes embarcações, devemos nos lembrar de uma palavra de ânimo que se aplica a todas elas…


Bruna Almeida Piva

Palco de incontáveis guerras, testemunha de numerosos atos de heroísmo e também de terríveis naufrágios, o mar seria um ótimo contador de histórias, se pudesse falar…

Milhares de navegantes já ousaram se aventurar em suas águas, gemendo sob a fúria das ondas bravias! Em seu seio forjam-se heróis, mas são também sepultados os covardes. Só subsistem ao desafio aqueles que estão dispostos a vencer o risco, o medo e o infortúnio. Uma loucura? Para os medíocres, talvez. Todavia, as almas magnânimas sentem falta de ar quando estão fora dos ventos do heroísmo!

Algo desses prodigiosos portentos marítimos nos foram narrados pela História. Imaginemos como devia ser elegante o deslocamento das caravelas portuguesas, com suas velas enfunadas pelo vento, partindo da velha Europa em busca de novos horizontes! Mesmo sendo conscientes de sua vulnerabilidade, elas partiam destemidas e seguras rumo à realização de seu ideal: conquistar terras para Portugal e almas para a Santa Igreja!

Já os formosos e guerreiros barcos vikings, quão diferentes são! Fabricados para o combate, autênticas bases de exército marítimas, não deixam de ser muito belos, com os característicos detalhes em madeira de suas proas e popas. Bem podem representar a nobreza do espírito bélico que, longe de ser sinônimo de brutalidade ou impiedade, nasce do verdadeiro amor a Deus e da consequente inconformidade do homem com tudo o que a Ele se opõe.

Voltando aos dias atuais, o que dizer dos transatlânticos? São os gigantes soberbos dos mares! Enormes, fortes e pesados, avançam constantes e quase imóveis sobre as ondas, com uma seriedade assombrosa. Tão seguros de si que só mesmo Deus os pode afundar…

Por outro lado, impossível é nos esquecermos das pequeninas e solitárias embarcações dos pescadores, instrumentos para eles retirarem com maestria do furioso oceano o seu sustento… Minúsculas quando comparadas à imensidão das águas, tornam-se colossais ao enfrentá-las com galhardia!

Incontáveis exemplos como estes teríamos ainda para relatar. Há, porém, um aspecto mais belo e profundo que merece ser analisado.

O oceano representa de certo modo a vida do homem sobre a terra: mar de preocupações, perigos, dificuldades e provas que cada alma deve atravessar incólume, sem deixar que sua nave naufrague pelo caminho…

Ora, nas tormentas desta vida, os diferentes tipos de almas que as enfrentam assemelham-se às distintas embarcações que singram o mar. Algumas, pequenas e solitárias, possuem o encargo de salvar a sua própria alma sem ter de carregar sobre si o peso de outras. Sua existência, contudo, é incontestavelmente grandiosa: acaso o Redentor não derramou o seu Sangue preciosíssimo também por elas?

O oceano representa de certo modo a vida do homem sobre a terra
Há, ademais, almas muito chamadas, a cuja correspondência Deus condiciona a salvação de outras tantas: são como as caravelas de Portugal, que partem em busca do bem das outras e junto a elas descobrem a Pátria Celeste!

A maior responsabilidade, porém, recai sobre os “transatlânticos” da Santa Igreja: os fundadores! Sob seu cuidado está o governo espiritual de uma grande família de almas e, às vezes, deles dependem todos os fiéis da sua época, por terem recebido da Divina Providência o carisma específico que atende às necessidades da Igreja do seu tempo. São almas imensas, cujas ações pesam mais diante de Deus, os guias sérios, constantes e fortes que atraem a si os bons e os conduzem com segurança ao Divino Porto Seguro, que é Cristo!

Enfim, ainda mais do que nos oceanos, a diversidade de “naus” humanas é assombrosa… Ora, após analisar tão diferentes embarcações, devemos nos lembrar que há uma palavra de ânimo que se aplica a todos os que navegam por esta vida: sejam quais forem os reveses ou ventos contrários que sobre nós se lancem, um meio infalível de evitar o naufrágio é sempre agarrar-se à Âncora da Confiança, ao Farol de Misericórdia que nos concedeu o Salvador: Maria Santíssima!

(Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2017, n. 188, pp. 50 à 51)


3 de set. de 2017

O exemplo dos esquilos

 Buscai em primeiro lugar
o Reino de Deus

Para nossa dor, no mais das vezes, agimos com menos discernimento do que os esquilos. Agarramos primeiro o menos importante: o terreno. E deixamos para depois, às vezes para nunca, o mais valioso: o celeste

Ryan Francis Murphy

Uma das experiências marcantes que se tem na infância consiste, sem dúvida, nos primeiros contatos travados com os animaizinhos, domésticos ou não, com os quais as crianças sempre buscam fazer "amizade". A pequena Santa Catarina Labouré encantava-se em alimentar as brancas pombas que esvoaçavam em torno de sua casa; o bom e comunicativo menino chamado João Bosco já exercitava seu inato desejo de ajudar e proteger, acudindo os cãezinhos viralatas que perambulavam em sua rua.

Em boa parte da Europa, e praticamente em toda a América do Norte, não há criança que não tenha se entretido com os mais encantadores e pitorescos animaizinhos existentes neste mundo: os esquilos.

Extremamente versáteis, pode-se vê-los subindo e descendo pelas árvores, com uma agilidade que parece desafiar a lei da gravidade. Ora invadem a área reservada para alimentação dos pássaros, a fim de roubar-lhes as sementes, ora saltam em meio às folhas do outono, buscando o melhor lugar para esconder uma valiosa noz.

Sua longa cauda em pluma balança para todas as direções, sempre com elegância e distinção. E quando chove ou neva, eles a usam como um prático guarda-chuva, a protegê-los de modo eficiente contra as gotas e flocos.

Não é fácil conquistar-lhes a amizade. Se os esquilos cinzentos, que conseguem viver nas cidades, já são ariscos, ainda mais os pequenos e rapidíssimos chipmunks, (os famosos esquilos listrados), que só vivem nos bosques.

Um meio de atraí-los é deixar do lado de fora da casa de campo algum tipo de noz. No início, longe das construções; depois, cada dia um pouco mais perto. Se tudo correr bem, após certo tempo o pequenino e aveludado esquilo, com seus grandes e desconfiados olhos negros, estará à nossa janela de manhã, à espera de sua quota diária de sementes.

Fizemos certa vez uma experiência interessantíssima, ensinada por um sacerdote amigo que tinha o dom de captar a confiança dos elusivos esquilos. Colocamos no beiral da janela, separadas, variadas espécies de sementes: avelãs, nozes, amêndoas e amendoins. Pouco tempo depois, farejando algo apetitoso, apareceu nosso felpudo amiguinho. Observou atentamente a todas, em seguida apanhou com os dentes a noz e saiu na disparada, para escondê-la em local seguro. Voltou logo após, pegando dessa vez a amêndoa. E assim sucessivamente, levando todas em perfeita ordem, desde a mais valiosa até a mais comum. Por fim, pegou os corriqueiros e baratos amendoins.

Transcorridos os anos, e atingida a idade adulta, não é raro acontecer que, em meio às desilusões da existência, as pessoas esqueçam os úteis ensinamentos aprendidos nos doces anos da infância.

Um menino, ou uma menina, que tivesse observado o proceder dos esquilos poderia, sem dificuldade, tirar uma sábia lição para toda a sua vida. Esses animaizinhos invariavelmente escolhem primeiro o melhor e mais importante, e só depois tomam o secundário, o de menor valor. Parece algo muito simples, mas, infelizmente, não é o que sempre fazemos.

Sabemos e admitimos como certo que Deus existe. Conhecemos seus mandamentos. No entanto, quantas e quantas vezes não é Ele o último personagem nas cogitações do homem comum? Ao tomar uma decisão, ou ao desejar algo, não é mais frequente alguém pensar primeiro no prestígio, no prazer ou nas vantagens pessoais que esta ou aquela situação lhe trará? E como é rara a seguinte preocupação: "Será isso o que Deus quer de mim?"

Sim, para nossa dor, no mais das vezes, agimos com menos discernimento do que os esquilos. Agarramos primeiro o menos importante - o terreno - e deixamos para depois, às vezes para nunca, o mais valioso: o celeste. Eis aí a razão de tantas das tristezas e amarguras que afligem nossa pobre humanidade.

Os versáteis esquilos não possuem propriamente inteligência. Mas se lhes fosse dado falar, quem sabe, saltando no beiral de nossa janela, um deles não viria repetir-nos o ensinamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Criador dos homens e dos esquilos: "Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo" (Mt 6, 33). 

(Revista Arautos do Evangelho, Junho/2007, n. 66, p. 50-51)