29 de jan. de 2017

O Cortejo dos Profetas

Congonhas do Campo é o lugar
onde as pedras falam.

Milagre da arte que o escultor brasileiro  
Antônio Francisco Lisboa - o Aleijadinho – 
realizou, nas figuras dos Profetas.

Estamos em 24 de maio de 1733. As ruas íngremes de Vila Rica, antiga capital de Minas Gerais, despertaram floridas, repletas de damascos e sedas. As pedrarias, o ouro, a prata brilhavam nos locais mais inesperados…

“Então, com absoluto respeito do povo, celebrou-se Missa na Igreja do Rosário oficiada a dois coros de música, de cujos ministros a riqueza dos paramentos dava gosto aos olhos, elevação aos corações.


“Além da massa de fiéis vindos de uma redondeza de quarenta léguas, irmandades, representantes do clero, autoridades civis e militares, desfilavam ainda mais de duzentas figuras em vestes simbólicas e alegorias variadas.

“Cinco arcos de triunfo incrustados de ouro e diamantes enfeitavam as ruas. 


“À frente da principal irmandade se distinguia uma custosa Cruz de prata com mangas de seda e franjões de ouro nos lados. Conduzida por ceroferários, viam-se duas tocheiras de prata ornamentadas de caprichosos arabescos. Era acolitada pelo provedor e sacerdotes de casula, dalmáticas, capas de asperges, alvas, manípulos e estolas. Anjos vestidos ‘à trágica’ levavam bandejas de prata cheias de flores odoríferas, que espalhavam graciosamente nas ruas, e só então surgia o Divino e Eucarístico Sacramento debaixo de um pálio carmesim.”

Assim descrevia Simão Ferreira, cronista da época, a transladação do Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário para o novo templo de Nossa Senhora do Pilar. E concluía dizendo:

“Não há lembrança de que se visse no Brasil, nem consta que se fizesse na América, ato de maior grandeza.”


O Brasil não havia contemplado uma festividade com tanto esplendor, com tamanho fausto. 
Essa procissão ficaria gravada em nossa história  como O Triunfo Eucarístico.
Basílica Nossa Senhora do Pilar - Ouro Preto (MG)

Nascido escravo, libertado pelo Batismo

É nesse ambiente de piedade e de opulência que uma criança de apenas três anos de idade tomava seus primeiros contatos com a magnificência da liturgia católica. Seu nome: Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho. Nascido em 29 de agosto de 1730, filho do artista português Manoel Francisco da Costa Lisboa e de uma escrava de nome Isabel, teve por berço o lugarejo de Bom Sucesso, pertencente à antiga Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar de Albuquerque, pomposo nome que outrora ostentava a cidade de Ouro Preto. Nasceu escravo segundo a lei então vigente, mas seu pai, num gesto cheio de simbolismo, o libertou no dia de seu Batismo.

Um escultor barroco com espírito medieval

Pouco se sabe de sua infância e adolescência. Mas, enquanto seus coetâneos se aventuravam para encontrar o metal dourado, tão abundante naquelas regiões, ele desde cedo sonhava com um tesouro não menos fascinador: a arte cristã.
É natural pensar que Aleijadinho teve sua formação junto ao pai, então encarregado da construção de importantes obras, como o Palácio dos Governadores. Aos vinte anos iniciou-se como entalhador na oficina de Coelho de Noronha. Sua maior aptidão revelou-se na difícil e rara arte da estatuária.
Trabalho não faltava para esse mulato de gênio, pois as numerosas confrarias existentes na Província mineira, empenhadas em santa emulação, procuravam cada qual construir igrejas mais belas e suntuosas.

As obras de Aleijadinho fizeram dele
o artista mais reconhecido de sua época
Nosso Senhor dos Passos -
Santuário do Bom Jesus dos Matosinhos (MG)
Antônio Francisco ia sendo reconhecido como o artista mais completo de sua geração. Seguiram-se décadas de criações em todos os campos. A igreja de São Francisco, em Ouro Preto, é desse período. Foi considerada por Germain de Bazin, conservador do Museu do Louvre (Paris), como um dos monumentos mais perfeitos do Ocidente.

Ao desenhar uma igreja ou preparar uma decoração, corria com desenvoltura e fazia o barroco. Mas é como artista gótico que concebeu a maior parte de suas imagens. Entretanto, como um escultor do século XVIII, que não fez estudos específicos e nunca saiu de sua província natal, hauriu inspiração na arte da Idade Média?

Segundo se acredita, teria chegado às suas mãos algum exemplar dos célebres Livros das Horas ou da Biblia Pauperum (Bíblia dos Pobres), pois outrora, para facilitar ao povo o conhecimento do Velho e do Novo Testamento, difundiam-se bíblias acompanhadas de gravuras com paisagens e figuras. O Mestre Aleijadinho, que sempre procurou inspirar-se nos livros sagrados, certamente demorou-se a contemplar as ilustrações de miniaturistas medievais contidas em algumas dessas obras.

A dor esculpiu em sua alma a resignação

Precisamente no auge de seu prestígio de artista, aos cinquenta anos de idade, sobreveio-lhe a doença que o levaria à morte: a lepra. Com a progressão da moléstia, seu aspecto ia ficando cada vez mais desolador. Perdeu todos os dedos dos pés, passou a andar de joelhos. Os dedos das mãos se atrofiaram e curvaram.

Antônio Francisco, mesmo depois de aleijado e doente, perseverou no cultivo da arte. Antes dos primeiros albores da aurora, rumava ao local de trabalho. Nunca se acovardou na luta ingente contra a enfermidade cruel e mutiladora. É trágico para um homem contemplar o espetáculo da brutal decadência do seu corpo. Mas se o organismo, que é matéria, foi perecendo, o espírito, que é luz, se alou aos céus e concebeu aquelas maravilhas.

O cortejo dos profetas

Em Congonhas do Campo ergue-se o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, encravado no cume de uma montanha que domina todo o lugar. Aqui Aleijadinho deixou esculpido o mais belo conjunto artístico do Brasil. Subindo em procissão a íngreme ladeira, após contemplarmos as seis capelas dos Passos da Paixão, paramos diante da escadaria que dá acesso à Igreja.

Vemos o cortejo dos doze profetas: eles parecem ter acabado de sair do interior do templo, onde estavam reunidos. Tendo recebido os ensinamentos de Deus, dirigem-se para as amuradas da igreja. Com os pergaminhos em punho, diante do anfiteatro de montanhas onduladas, começam a profetizar… É enorme a força expressiva dessas imagens. Certas fisionomias palpitam de vida intensa.

O primeiro a apresentar-se é o sublime Isaías, com sua barba encaracolada, batida pelos ventos, e seu semblante firme parecendo dardejar fagulhas do olhar. Da boca aberta dessa imagem de pedra parecem irromper palavras de fogo. Diz o pergaminho seguro em suas mãos: “Depois que os Serafins celebraram o Senhor, um deles trouxe aos meus lábios uma brasa com uma tenaz”.

Ao seu lado, Jeremias, o profeta das Lamentações, fala pelo seu filactério: “Choro a derrota da Judéia e a ruína de Jerusalém. Peço que queiram voltar ao meu Senhor”. Atrás deles estão Baruch e Ezequiel. Com seu olhar de lince transpondo os séculos, Ezequiel analisa o futuro que seus lábios vigorosos estão prontos a anunciar aos homens.

E já sobre o terraço, juntamente com Oséias, encontra-se o formoso e meditativo Daniel, ao lado de um leão veneziano, evocando a graça recebida: “Encerrado na cova dos leões por ordem do rei, sou libertado incólume com o auxílio de Deus”. E assim vemos passar Abdias, Joel, Amós e Naum, cujos semblantes nos causam enlevo e admiração. Também o majestoso Habacuc, com o braço levantado e o dedo em riste apontando para o céu, como outrora Moisés no Sinai.

Só nos falta falar de Jonas. Com os olhos voltados para as alturas, agradece ao Senhor o milagroso salvamento e proclama por meio de seu pergaminho: “Engolido por uma baleia, permaneço três dias e três noites no seu ventre. Anuncio minha ida a Nínive”. 

Desse conjunto de atitudes, nasce uma harmonia fascinante. Parece que um sopro de vida anima os profetas criados pelo escultor mineiro. Essas imagens, além do valor artístico, estão cheias de piedade cristã. São, a um só tempo, obras de arte e de devoção.

Derrotado pela lepra, triunfante no Céu

Depois de um esforço sobre-humano para criar essa obra de grandeza bíblica, chegou a vez de o cinzel da morte golpear o corpo de nosso artista. A lepra já atingira profundamente o seu tronco, chagando-lhe um dos lados do corpo. Junto com a paralisia, veio-lhe a perda parcial da vista. Passou dois anos inteiros deitado sobre um estrado de tábuas, sem se levantar. Seus olhos, já quase extintos, ainda conseguiam divisar no quarto uma pequena imagem de Cristo crucificado. E nos instantes de extrema angústia e de forte sofrimento rogava ao Senhor que sobre ele pusesse seus divinos pés.

A 18 de novembro de 1814, reconfortado por todos os sacramentos da Igreja, o grande artista entregou sua alma a Deus. Teve um enterro simples e pobre. Foi sepultado na igreja de Antônio Dias, diante do altar de Nossa Senhora da Boa Morte. Seus restos mortais iriam repousar a pequena distância da pia batismal onde ele se fizera cristão…

Como dizia um grande teólogo, o mais rápido corcel para conduzir à perfeição é o sofrimento. Diante da dor, o Aleijadinho compôs um poema de fé cinzelado em pedra sabão… 

(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2007, n. 61, p. 48 à 51)

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