Cristo, o Altíssimo - Museu Nacional do Hermitage, São Petesburgo (Rússia) |
Naquele tempo, disse
Jesus a seus discípulos: 24 “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o
outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e
ao dinheiro. 25 Por isso Eu vos digo: não vos preocupeis com a
vossa vida, com o que havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o
que havereis de vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o
corpo, mais do que a roupa? 26 Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem ajuntam
em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos Céus os alimenta. Vós não
valeis mais do que os pássaros? 27 Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de
se preocupar com isso? 28 E por que ficais preocupados com a roupa? Olhai
como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. 29 Porém, Eu vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se
vestiu como um deles. 30 Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje
existe e amanhã é queimada no forno, não fará Ele muito mais por vós, gente de
pouca fé? 31 Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos
comer? O que vamos beber? Como vamos nos vestir? 32 Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos Céus,
sabe que precisais de tudo isso. 33 Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo. 34 Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã
terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas” (Mt 6,
24-34).
VIII DOMINGO DO TEMPO COMUM
Pode-se servir a Deus a às riquezas?
Mons. João Clá Dias, EP |
“Sempre tereis convosco os
pobres” (Jo 12, 8), respondeu Jesus a Judas que, perplexo diante de um grande
gasto de Maria Madalena, para ungir os adoráveis pés do Salvador, perguntara:
"Por que não se vendeu esse bálsamo por trezentos denários e não se deu o
dinheiro aos pobres?" (Jo 12, 5). Qual o ensinamento de Nosso Senhor a
esse respeito?
I – INTRODUÇÃO
Eis é a grande ansiedade
que pervade as almas de povos e nações dos últimos tempos: a frenética busca
dos bens materiais. Ora, segundo os Doutores, tanto mais se dividem os homens,
quanto mais se apegam a esses bens. Pelo contrário, tanto mais união,
benquerença e paz há entre eles, quanto mais se entregam aos bens espirituais.
São Tomás de Aquino se serve várias vezes desse elevado pensamento de Santo
Agostinho: "Bona spiritualia possunt
simul a pluribus possideri, non autem
bona corporalia – Os bens espirituais podem ser possuídos ao mesmo tempo
por muitos, não, porém, os bens corporais”.1
Assim, quanto maior for o
número dos que possuem os mesmos bens do espírito, tanto melhor será. Ademais,
obtém-se grande progresso no conhecimento da verdade, na medida em que se
procure ensiná-la e se deseje aprendê-la nos outros.
Eis a liturgia de hoje a
nos indicar uma profunda solução para as crises atuais: a da desgastada questão
social e a da ameaçada economia mundial.
Quem nasceu numa gruta,
teve uma manjedoura por berço e em sua vida pública não encontrou onde repousar
a cabeça, tem absoluta autoridade para discorrer sobre o desprendimento. A
experiência humana, ao longo dos milênios, comprova que não devemos amar as
criaturas por elas mesmas. Se for conveniente ou até necessário amá-las, é em
função do amor a Deus que devemos fazê- lo.
"É claro que o
coração humano tanto mais intensamente se entrega a uma coisa quanto mais se
aparta de muitas outras" 2. Seguindo
essa via, alguns santos alcançaram um alto grau de virtude, sobretudo ao
abraçarem o exagero. São Francisco de Assis chega a fazer um conúbio místico
com a pobreza, e Santo Inácio de Loyola, ao partir para Jerusalém, depois de
sua contemplação em Manresa, deixa na praia de Barcelona tudo quanto lhe haviam
dado; leva consigo três companheiras: a fé, a esperança e a caridade.
A outros, porém, São
Paulo recomenda serem previdentes: "Quem não quiser trabalhar, não tem o
direito de comer" (2 Tes 3, 10). Até onde deve ir a preocupação com nossa
subsistência e qual a atitude de alma, equilibrada e santa, face aos bens deste
mundo, como, também, a plena confiança em Deus, são os temas tratados pela
Liturgia deste VIII Domingo do Tempo Comum.
II – DOIS SENHORES QUE
NÃO ADMITEM RIVAIS
Naquele
tempo, disse Jesus a seus discípulos: 24 “Ninguém pode servir a dois senhores: pois, ou odiará um e amará o
outro, ou será fiel a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e
ao dinheiro”.
O presente Evangelho faz
parte do famoso Sermão da Montanha, do qual São Mateus transcreve as partes
essenciais. Nele transparece a forte advertência do Divino Mestre contra o
desvario dos que se afanam pelos tesouros deste mundo e acabam por se perder em
meio às aflitivas preocupações da vida presente.
O
apego às riquezas constitui uma real escravidão
Neste versículo, é muito
sutil e preciso o emprego do verbo servir, e não qualquer outro, pois o
problema central não está em ter bens materiais, mas sim no valor que a eles se
tributa e, sobretudo, no afeto que se lhes tenha. Em sua substância,
encontramos aqui um desdobramento do Decálogo, em particular do Primeiro Mandamento, tal como o próprio Deus o
declarou através de Seus profetas: “Não terás outros deuses diante de minha
face. Não farás para ti escultura, nem figura alguma [...]. Não te prostrarás
diante delas e não lhes prestará culto. Eu sou o Senhor, teu Deus” (Ex 20,
3-5). 3
O apego às riquezas
constitui, a partir de certo grau, uma real escravidão e "ninguém pode
servir a dois senhores quando mandam coisas contrárias, nem mesmo quando
ordenam coisas diferentes, porque a própria natureza impede que o amor do servo
se reparta para dois senhores diversos" 4.
Um
servo não pode entregar sua vontade a dois senhores
Havendo um apreço
desequilibrado pelos bens deste mundo, quem o possua terá conferido a esses
bens o caráter de senhorio. Ora, sabemos o quanto a escravidão, em si mesma, é
avassaladora. As faculdades do escravo pertencem ao senhor e a este deve ele
entregar todo o seu serviço. “Um só senhor pode ter muitos servos, mas um servo
não pode ter muitos senhores; pois o próprio do senhor é governar o servo, e
não precisamente amá-lo; enquanto o específico do servo é amar, e não governar
seu senhor; o mando pode dividir-se, mas não o amor. Com isso, Cristo indica
que as riquezas se gastam injustamente não só quando são injustas.
As riquezas, se são amadas, apartam o homem do amor a Deus |
Contudo, até
mesmo quando não foram adquiridas por maus meios, se são amadas, apartam o
homem do amor a Deus. Ninguém pode servir a dois senhores, como disse antes: ‘É
impossível que um rico entre no Reino dos Céus’ (Mt 19, 23). Observa o autor da
Obra Imperfeita que ninguém pode servir a dois senhores, e não diz que ninguém
pode ter dois senhores. Dá o nome de senhor a qualquer coisa a que nos tenhamos
entregado em demasia, à qual servimos de alguma maneira: ‘Não sabeis que,
quando vos ofereceis a alguém para lhe obedecer, sois escravos daquele a quem
obedeceis, quer seja do pecado para a morte, quer da obediência para a
justiça?' (Rm 6, 16). E São Pedro: ‘O homem é feito escravo daquele que o
venceu' (2 Pd 2, 19).4
O verbo servir empregado
neste versículo refere-se à situação de um servo que, sem restrição alguma,
entrega sua vontade a um senhor, figura muito de acordo com a inclinação para os
extremos, tão característica dos orientais. Neste caso, torna-se impossível ao
servo obedecer a um segundo senhor que lhe dê qualquer incumbência oposta e
simultânea à exigida pelo primeiro. Ademais, acabará por amar menos seu
autêntico senhor, atitude à qual equivale o significado do termo
"odiar" na língua hebraica 6. Na realidade, Deus não quer apenas uma
parte de nosso coração, ainda que esta seja grande. Ele o deseja na sua
íntegra, e essa entrega deve ser realizada por nós com alegria, generosidade e
constância.
Dois
senhores rivais: Deus e o dinheiro
Resumindo, o Divino
Mestre nos coloca diante de dois senhores diametralmente opostos no que
concerne aos seus respectivos interesses: Deus e o dinheiro. O primeiro nos
exige a crença nEle e em Suas revelações, a esperança em Suas promessas, com
amor total, além da prática da castidade, da humildade, como também do cortejo
de todas as virtudes. O dinheiro cobra de nós, e nos inspira ambição, volúpia
de prazeres, vaidade, orgulho, menosprezo do próximo, etc. Um nos dá forças
para praticar o bem e a este inclina nossas paixões, enquanto o outro nos
arrasta para o mal e nele nos vicia. O Céu e sua eterna felicidade constituem o
estímulo para os esforços exigidos por um dos senhores. A Terra e seus prazeres
fugazes são os atrativos oferecidos pelo outro.
Esses dois senhores não
admitem rivais. O pior rival do dinheiro é Deus, e vice-versa. Por isso, a
desgraça do rico que entrega seu coração aos bens da terra consiste em buscar
em vão sua felicidade neles; e a desgraça do pobre, em iludir-se com a
pseudofelicidade oferecida pelas riquezas.
É preciso ter sempre
diante dos olhos o quanto são opostos entre si, Deus e o mundo. Por isso, não
queiramos servir a ambos ao mesmo tempo: “Não vos prendais ao mesmo jugo com os
infiéis. Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunidade
entre a luz e as trevas? Que compatibilidade pode haver entre Cristo e Belial?
Ou que acordo entre o fiel e o infiel? Como conciliar o templo de Deus e os ídolos?
Porque somos o templo de Deus vivo” (II Cor 6, 14-16).
III – SAIBAMOS HIERARQUIZAR AS NOSSAS
PREOCUPAÇÕES
25 “Por isso Eu vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida, com o que
havereis de comer ou beber; nem com o vosso corpo, com o que havereis de
vestir. Afinal, a vida não vale mais do que o alimento, e o corpo, mais do que
a roupa? 26 Olhai os pássaros dos céus: eles não semeiam, não colhem, nem
ajuntam em armazéns. No entanto, vosso Pai que está nos Céus os alimenta. Vós
não valeis mais do que os pássaros?”
A natureza puramente
animal, assim como a vegetal, com seus instintos respectivos, normais e ordenados,
e não possuindo uma alma imortal não buscam a felicidade infinita. Ademais, as
aves não armazenam alimentos em celeiros e os lírios não tecem nem fiam, pois
lhes falta a racionalidade para terem essas preocupações.
Ora, o homem - mais do
que as plantas buscam o sol, e os animais o alimento -, possui uma alma que,
num verdadeiro "teotropismo", vive à procura do infinito.
"Buscar-Vos, ó meu Deus" - clama Santo Agostinho - "é buscar
minha felicidade e bem-aventurança: devo buscar- Vos para que minha alma viva,
porque sois Vós a vida de minha alma, assim como ela é que dá vida a meu
corpo" 7.
O coração do homem só
está em paz quando encontra Deus. Essa "felicidade e bem-aventurança"
não estão no afã das riquezas, pois, ao desejá- las fora do amor a Deus, pobres
ou ricos entregar-se-ão às ânsias voluptuosas de querer sempre mais.
Deve-se
procurar os bens materiais, mas sem inquietação
Evidentemente, não exclui
o Divino Mestre nossa obrigação em relação ao trabalho. Sobre este particular
há numerosos comentários de santos doutores, demonstrando ser o trabalho um
excelente meio de santificação. Jesus tem diante de Si todos aqueles que colocam
como último limite de seus horizontes os bens materiais, e na obtenção destes
aplicam sofregamente toda a sua preocupação. Essa atitude carrega consigo uma
boa parcela de culpabilidade, além de ser autodestrutiva. Antes de tudo, por
ofender de certa forma a Deus, ao manifestar-Lhe desconfiança de Sua bondade. E
ademais, perde o apoio divino ao colocar toda a sua segurança em esforços e
planejamentos pessoais. Em síntese, torna-se patente o quanto o homem não pode
descuidar dos bens eternos, pelo fato de ir atrás do indispensável à vida.
Deve-se buscar os bens
materiais, mas sem inquietação, pois esta implicaria em negar a infinita
generosidade de Deus.
Uma
fundamental lição sobre como devemos hierarquizar nossas preocupações
Por essa razão, comenta Maldonado:
"Quem, a não ser Deus, nos deu a alma e o corpo? Assim, quer Pedro que
ponhamos nEle nossa solicitude, certos de que Ele cuidará de nós" (cf. 1
Pd 5, 7)" 8. Claro está que Deus não
poderia nos dar o corpo e a vida com o intuito de nos lançar na fome e na
miséria. Sua infinita e sábia providência impõe que Ele nos proporcione as
condições para sustentar nossa natureza física como também - e principalmente -
nossa vida sobrenatural. Assim, Deus que, às vezes, permite nos advenham cruzes
e sofrimentos ao longo de nossa existência, derrama graças e forças para tudo
suportarmos com vantagem para nós.
O Divino Mestre nos dá
uma fundamental lição sobre a devida
hierarquização de nossas preocupações. Sendo o homem composto de corpo e
alma, e por ser esta mais valiosa, merece maior atenção e cuidado. Portanto, se
necessário for desprezar ou abandonar outros interesses em benefício da
salvação da própria alma, assim se deve proceder, pois Deus nos dará o
secundário.
Insere-se nestes
versículos a vocação apostólica e missionária, como por exemplo a de um Beato
Anchieta, que abandona familiares, pátria e bens, e ruma para terras
desconhecidas com o objetivo de converter e santificar incontáveis indígenas,
no Brasil. Os que abraçam essa via recebem o cêntuplo nesta terra e o prêmio da
vida eterna (cf. Mt 19, 29).
Se
nosso Pai cuida de criaturas inferiores, quanto mais não cuidará de nós?
Quando conseguimos um
hiato de calma dentro da febricitada correria dos dias atuais para observar a
natureza viva - desde a tenacidade das formigas em busca de alimento, até a
agilidade de um colibri, sugando com elegância o conteúdo quase místico de uma
flor - num ato contínuo louvamos a Deus, por constatar essa maravilhosa
disposição da Divina Providência de oferecer a insetos e animais o necessário
para o seu sustento. "Todos esses seres esperam de Vós que lhes deis de
comer em seu tempo. Vós lhes dais e eles o recolhem; abris a mão, e se fartam
de bens" (Sl 103, 27-28).
Ora, o homem é, não só,
superior a todas as criaturas terrenas, mas até mesmo seu rei (cf. Gen 1, 28).
Sendo assim, é preciso que esse rei supere o exemplo desses súditos seus que
com tanta abnegação praticam a pobreza evangélica: as aves do céu. Despojadas
de tudo, dependem exclusivamente da benevolência divina. Ademais, como bem
comenta Maldonado: "As aves andam no mais alto do ar, estão mais distantes
de sua comida e, no entanto, Deus as alimenta". Jesus usou o exemplo das
aves "porque os animais terrestres gastam mais tempo em procurar o alimento
e escondê-lo com sua habilidade" 9.
As aves voam no mais alto do ar, estão mais distantes de sua comida, e, no entanto, Deus as alimenta |
É, de certa forma,
curioso referir-se o Divino Mestre às aves "do céu" e não às
domésticas, pois estas são alimentadas pelos homens e as outras pelo
"vosso Pai celeste". Ou seja, se nosso Pai cuida de criaturas tão
inferiores que não têm nenhum grau de filiação em relação a Ele, quanto mais
não cuidará de nós, irmãos de Seu "Filho muito amado" (Mt 3, 17)!
São Lucas nos diz:
"Considerai os corvos: não semeiam, nem ceifam, não têm despensa, nem
celeiro, e, contudo, Deus os sustenta. Quanto mais valeis vós do que
eles?" (Lc 12, 24).
Sobre essa passagem,
comenta Santo Ambrósio: "Os corvos, que não trabalham, têm o necessário
para seu uso, e o têm em abundância, porque não sabem reduzir a seu domínio
particular os frutos que foram dados em comum para todo mundo comer.
Nós, porém, perdemos o
comum porque nos esforçamos em apropriá-lo; e o perdemos porque não conseguimos
fazê-lo nosso, já que não durará perpetuamente, nem conseguimos ter uma
abundância certa onde o futuro é sempre incerto. Por que, pois, crês que tuas
riquezas são tuas, sendo que Deus quis que tua comida fosse comum com todos os
outros que vivem?" 10.
A
nossa impotência diante das leis da natureza
27 “Quem de vós pode prolongar a duração da própria vida, só pelo fato de
se preocupar com isso?”
A cada novo argumento,
torna- se incontestável nossa impotência diante das leis da natureza e, por
outro lado, a onipotência divina no governo do mundo. Por isso nos diz São João
Crisóstomo: "Deus é quem faz crescer vosso corpo, cada dia, sem que
possais dar-vos conta disso. Se, pois, todos os dias a Providência de Deus
trabalha em vós para o crescimento de vosso corpo, como ficará Ela inativa
diante de verdadeiras necessidades? Mas, se todos os esforços de vosso
pensamento não podem acrescentar a menor parcela a vosso corpo, como podereis
vós salvá-lo todo inteiro?" 11.
O
afeto de Deus visa também a nossa elegância e pulcritude
Pelos lírios, podem-se entender as celestes claridades dos Anjos, que o próprio Deus reveste de uma glória deslumbrante |
28 “E por que
ficais preocupados com a roupa? Olhai como crescem os lírios do campo: eles não
trabalham nem fiam. 29 Porém, Eu
vos digo: nem o rei Salomão, em toda a sua glória, jamais se vestiu como um
deles. 30 Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é
queimada no forno, não fará Ele muito mais por vós, gente de pouca fé?”
Jesus deixa claro serem
esses lírios, os "do campo", ou seja, os que nascem a esmo, sem os
cuidados dos homens. Na mesma linha do que anteriormente dissera sobre as aves,
ou seja, as "do céu", e não as domésticas. Chama-nos a atenção, de
modo especial, o carinho empregado pelas mães ao providenciarem as roupas para
suas crianças, pois procuram sempre vesti-las com beleza. Esse é o afeto de
Deus ao cuidar de cada uma de Suas criaturas humanas: visa Ele não só nossa
alimentação - como o faz com as "aves do céu" - mas também nossa
elegância e pulcritude. Esse esmero de Deus será ainda muito maior nos albores
da ressurreição dos corpos:
O exemplo de Salomão é de uma extraordinária eloquência para todos os tempos Salomão - Catedral de Strasbourg |
"Pelos lírios,
podem-se entender as celestes claridades dos Anjos, que o próprio Deus reveste
de uma glória deslumbrante. Eles não trabalham nem fiam, porque a graça que,
desde sua origem, assegurou a felicidade dos Anjos, difunde-se sobre todos os
momentos de sua existência; e como, após a ressurreição, os homens serão
semelhantes aos Anjos, Nosso Senhor, fazendo brilhar aos nossos olhos o
esplendor das virtudes celestes, quis nos fazer esperar essa vestimenta de
glória eterna" 12.
O exemplo de Salomão,
preocupado por vestir-se à altura da sabedoria que lhe havia sido gratuitamente
concedida por Deus, é de uma extraordinária eloquência para todos os tempos. Pois, quem com mais arte
saberia realizar essa tarefa? São João Crisóstomo sintetiza bem a diferença
entre as vestes de Salomão e as criadas por Deus: "das vestiduras de
Salomão à flor do campo há a distância da
mentira à verdade" 13.
Por conseguinte, duvidar
ou, pior ainda, não crer na Providência Divina é suficiente para sermos
classificados como "homens de pouca Fé", pois, se esses são os
cuidados de Deus para com ervas a serem queimadas quando murcharem, quanto
maiores não serão eles com as almas imortais e os corpos ressurrectos!
Não
vos aflijais: Deus vos ama e de vós cuida como Pai
31 “Portanto, não vos preocupeis, dizendo: O que vamos comer? O que vamos
beber? Como vamos nos vestir?”
Vê-se, neste versículo, o
empenho do Divino Mestre em nos convencer das verdades anteriormente expostas.
"O Senhor repete esta recomendação para nos fazer compreender sua
necessidade e gravá-la mais profundamente em nossos corações" 14.
32 “Os pagãos é que procuram essas coisas. Vosso Pai, que está nos Céus,
sabe que precisais de tudo isso”.
O padre Cornélio a Lápide alude à onipotência de Deus para que o homem não se preocupe com os bens materiais |
O sentimento familiar nos
tempos do Evangelho era mais sólido e profundo do que nos dias da atual
decadência, na qual vai desmoronando essa pilastra de uma sociedade bem
constituída. Todos tinham um conceito claro e indiscutível a respeito da
paternalidade. Em outro momento, Jesus lhes dirá: "Se vós, pois, que sois
maus, sabeis dar boas coisas a vossos filhos, quanto mais vosso Pai celeste
dará boas coisas aos que Lhe pedirem" (Mt 7, 11; cf. Lc 11, 13).
Ademais, os judeus tinham
como um dos mais elevados pontos de honra o de serem contrapostos às concepções
dos gentios. Ao atribuir à mentalidade dos pagãos a excessiva preocupação pelos
bens deste mundo, Jesus tornava ainda mais patente Sua enérgica e categórica
rejeição à mesma. Ouçamos o famoso Cornélio a Lápide comentar esta passagem:
"Não vivais ansiosos sobre o que vestireis, pois Deus o sabe
perfeitamente; mais ainda, o vê e intui, porque é Deus; logo, Ele proverá,
porque vos ama e cuida de vós como Pai, e pode fazê-lo porque é celestial,
portanto, onipotente. Por que, pois, não Lhe entregais todas as vossas
preocupações? Ele sabe, quer e pode socorrer- vos em vossas necessidades; sabe
porque é Deus, quer porque é Pai, e pode porque é Rei celestial e impera com
pleno direito no Céu e na Terra.[…]
Por isso São Francisco
não dava aos seus outra provisão a não ser este dito dos Salmos: ‘Deposita no
Senhor teus cuidados e Ele te alimentará'" (Sl 54, 23) 15.
IV – Busquemos, em
primeiro lugar, a nossa santificação
33 “Pelo contrário, buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua
justiça, e todas estas coisas vos serão dadas por acréscimo”.
A síntese de toda a
doutrina do Evangelho se encontra nas palavras deste versículo; trata-se de, em
primeiro lugar, buscar o Reino de Deus, como também a própria justiça desse
mesmo Reino, tal como Jesus o pregou, ou seja, o oposto do almejado pelos
fariseus.
O Reino de Deus pode ser
considerado debaixo de três diferentes prismas: o da glória dos
bem-aventurados, ou seja, o triunfante; o da Santa Igreja, que se evidencia no
visível e externo Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo; e, por fim, o da graça
santificante em nossas almas ou interno.
Assim, devemos buscar a
realização da santidade de Deus em nós, por meio do ódio ao pecado, numa
aspiração crescente de Lhe obedecer na prática de todos os Mandamentos, com
base num abrasado amor a Ele. Conduzindo, por um dinâmico zelo apostólico, a
todos com quem tenhamos alguma relação, às vias dessa santidade, para maior
brilho da Santa Igreja e salvação das almas. E, por fim, almejando o Reino
eterno na glória.
Já em nosso despertar
matutino - quer sejamos pobres, quer ricos - devemos ter a lembrança deste
conselho de Nosso Senhor Jesus Cristo: "Buscai, pois, em primeiro lugar, o
Reino de Deus e a Sua justiça..." Mas, infelizmente, os pobres em sua
grande maioria não o fazem e, por isso, são objeto do egoísmo dos outros,
vivendo em pobreza neste mundo e ameaçados a nela se lançarem eternamente. E os
ricos menos ainda são inclinados a seguir a voz de Cristo, por imaginarem já
possuir "todas estas coisas"...
34 “Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã
terá suas preocupações! Para cada dia, bastam seus próprios problemas”.
Preocupemo-nos
primordialmente em santificar-nos a fim de obtermos o Reino de Deus.
Pratiquemos as virtudes e enriqueçamo-nos dos bens do Céu na plena confiança de
que, assim, não nos faltarão os da terra. Evitemos a ruína do relativismo moral
de nossos dias e cumpramos nossos deveres do dia-a-dia sem as aflições do amanhã.
É-nos proibido uma destrutiva inquietação com o nosso futuro material; jamais devemos nos esquecer da infinita bondade e carinho do Senhor |
Não nos é vedado fazer
uso de uma sábia e moderada prudência no que tange à nossa manutenção. É-nos
proibido, isto sim, uma destrutiva inquietação com o nosso futuro material que
nos leve a esquecer as obrigações de maior atualidade e importância, com
relação ao Reino de Deus. “Para cada dia, bastam seus próprios problemas”, pois
jamais devemos nos esquecer da infinita bondade e carinho do Senhor, conforme
transparece na primeira leitura de hoje: "Sião dizia: ‘O Senhor
abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim!’ Acaso pode a mulher esquecer-se do
filho pequeno, a ponto de não ter pena do fruto de seu ventre? Se ela se
esquecer, Eu, porém, não Me esquecerei de ti” (Is 49, 14-15).
1 Os bens espirituais podem ser possuídos ao mesmo tempo por muitos, não,
porém, os bens corporais (AQUINO, São Tomás de. Suma Teológica III, q. 23, a.1,
ad. 3; cf. tb. III, q.28, a.4, ad 2).
2 AQUINO, São Tomás de. Liber de perfectione spiritualis vitæ, c. 6.
3 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Madrid: BAC, 1964, v. II, p.
156.
4 MALDONADO, SJ, P. Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Madrid:
BAC, 1950, v. I, p. 303.
5 MALDONADO. Op. cit. id., ibid.
6 O termo é usado no mesmo sentido em Mt 10, 36-37; Lc 14, 26 e Rm 9,
12-13.
7 AGOSTINHO, Santo. Confissões. l. X, c. XX.
8 MALDONADO. Op. Cit. pp. 304-305.
9 MALDONADO. Op. cit. id. ibid.
10 In Lc 12, 24.
11 Apud AQUINO. Catena Aurea.
12 Santo Hilário, apud: AQUINO. Catena Aurea.
13 Apud: TUYA. Op. Cit. p. 158.
14 São Remígio, apud AQUINO. Catena Aurea.
15 In Mt 6, 31.
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