São João Batista na prisão Igreja de São João Batista Nova Escócia (Canadá) |
III DOMINGO DO ADVENTO
(DOMINGO GAUDETE)
O caminho para
a felicidade
Mons. Jão Clá Dias, EP |
I – UMA LUFADA DE ÂNIMO PARA CHEGAR ATÉ O FIM
Dizia o célebre teórico de guerra Karl von Clausewitz1 que a melhor
forma de vencer um adversário é fazê-lo perder o ânimo de combater, pois a
quebra de sua força moral é a causa principal de seu aniquilamento físico.
Assim, quando empreendemos uma ação com desânimo, não atingimos a meta. Pelo contrário,
quem tem uma confiança sólida, baseada numa fé vigorosa, desenvolve energias e
entusiasmo para perseverar até o fim com galhardia. Se, por acaso, na
realização de um árduo esforço, sentimos faltar o fôlego, basta uma lufada de
esperança para redobrar as boas disposições e garantir o sucesso.
A Igreja, no 3º Domingo do Advento — chamado Domingo
Gaudete —, tem em vista este propósito: fazer uma pausa nas
admoestações do período de penitência e amenizar a tristeza causada pela
lembrança dos pecados cometidos, para considerar com alegria a perspectiva do
nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. Em breve seremos libertados de nossa
miséria, se soubermos ouvir os seus ensinamentos e nos abrirmos às graças que
Ele nos traz, e poderemos seguir adiante com entusiasmo, confortados pela
certeza de que nos será dada a salvação. Esse verdadeiro gáudio pela próxima
vinda do Redentor é a nota tônica desta Missa, simbolizada pela cor rósea dos
paramentos e expressa nos textos litúrgicos, sem, todavia, excluir totalmente o
caráter penitencial. Depois do pecado original, a cruz tornou-se indispensável
para obtermos a glória no cumprimento da finalidade para a qual fomos criados.
A sede de felicidade da criatura
humana
Se voltarmos nossa atenção para cada criatura humana, encontraremos em todas elas o desejo de alcançar a felicidade. Quando Adão, belíssimo boneco de barro, saiu das mãos divinas e lhe foi infundido um sopro de vida, já possuía ele essa aspiração que era atendida com largueza por sua participação na própria natureza de Deus, a Felicidade Absoluta. Tão elevada era a figura deste varão que o Senhor ia visitá-lo no Paraíso, à hora da brisa da tarde (cf. Gn 3, 8). Eram felizes nossos primeiros pais! Porém, expulsos daquele local de delícias em consequência do pecado, Adão e Eva viram-se obrigados a habitar este mundo repleto de dificuldades, sem perder, entretanto, aquele anseio de felicidade. Ardiam de desejo de retornar ao estado de outrora, de gozar das maravilhas que tinham conhecido no Éden. Mais tarde, constituído o povo de Israel, especialmente amado pela Providência, esperava ele o advento de um Salvador que o tirasse dessa desditosa situação. Com o transcurso dos séculos e dos milênios, os hebreus ― sempre numa tremenda instabilidade e submetidos à escravidão por diversas vezes ― foram alimentando a ideia de que o Messias seria um homem aquinhoado por dons meramente naturais, portador de soluções humanas e políticas para todos os problemas. Sua grande incógnita era acerca da vinda deste enviado que traria a felicidade, a qual já não concebiam como uma condição semelhante à do Paraíso, mas segundo padrões terrenos. Algo parecido ocorre conosco, pois sabemos que o centro de nossa vida e a fonte da alegria é Nosso Senhor Jesus Cristo; contudo, as ilusões do mundo apontam para uma pseudofelicidade baseada em boa carreira, na aquisição de um valioso patrimônio, numa posição de prestígio, num vantajoso casamento ou, talvez, em negócios lucrativos. Numa palavra, a felicidade para os que assim pensam está na matéria, e não em Deus. Eis aí o lamentável equívoco.
Para desfazer esta falácia, a Liturgia do Domingo da Alegria nos indica
o verdadeiro caminho da felicidade e oferece um exemplo seguro a seguir.
II – A ALEGRIA
DE CUMPRIR A PRÓPRIA MISSÃO
O episódio narrado na sequência evangélica do 3º Domingo do
Advento dá-se em circunstâncias muito especiais. Nosso Senhor estava
adentrando o segundo ano de sua vida pública e já realizara inúmeros milagres,
encontrando-Se de regresso da pequenina cidade de Naim, onde por sua iniciativa
ressuscitara o filho de uma viúva (cf. Lc 7, 11-15). Ao passar pelas estradas
tortuosas da região entrou no vilarejo e deparou-Se com alguns homens
transportando um morto. Mandou parar o cortejo e restituiu a vida ao defunto,
entregando-o em seguida à sua mãe. Este fato teve enorme repercussão que,
somada à de muitos outros, moveu Israel inteiro a falar do grande Profeta que
havia surgido.
O Precursor pagou sua fidelidade à verdade com a prisão
“Naquele tempo, 2 João estava na prisão”.
João Batista, varão íntegro que recentemente abalara Israel com sua
pregação e exemplo de vida, havia sido preso. Em sua retidão, o Precursor
dissera algumas verdades ao rei Herodes Antipas ― que, escravo das próprias
paixões, era dominado por uma concubina, a esposa de seu irmão Filipe ― e, por
isso, o tirano resolvera prendê-lo. Pungente contraste: as paixões desregradas
e soltas de Herodes dão-lhe uma liberdade de ação ilegítima, e a honestidade de
João leva-o à prisão.
Na perspectiva do Domingo Gaudete surge uma pergunta: qual dos dois goza
de autêntica alegria, Antipas, o adúltero, ou São João, encarcerado por sua
fidelidade? Devemos nos compenetrar de que Deus criou o homem para um destino
eterno, no gáudio ou no sofrimento. Portanto, a verdadeira alegria é a que nos
conduz à felicidade do Céu, e não aquela que nos acarreta a desgraça sem fim.
No entanto, a humanidade bem gostaria de criar uma terceira via: um limbo onde
não houvesse sofrimento nem possibilidade de visão beatífica, mas apenas uma
vida natural, puramente sensitiva, pela eternidade inteira.
Lembremo-nos da importante máxima: “non datur tertius ― não
há uma terceira posição”. Esta foi inventada por satanás ao cair do Céu e é
feita de fumaça, é ilusória, pois na realidade não existe: ou violamos a moral
e damos vazão às nossas más inclinações, reproduzindo em nós a pseudoalegria de
Herodes Antipas, ou somos íntegros, a exemplo de João, e também nós estamos a
todo instante na “prisão”, ou seja, subjugando e acorrentando nossas tendências
e paixões desordenadas.
Preocupação exclusiva com a glória de Cristo
“Quando ouviu falar das obras de Cristo, enviou-Lhe alguns
discípulos, 3 para Lhe
perguntarem: ‘És Tu, Aquele que há de vir ou devemos esperar um outro?’”.
Que acontecimentos teriam levado o Precursor, já no cárcere, a mandar
seus discípulos fazerem esta pergunta ao Divino Mestre? Antes de aventar
qualquer hipótese, tenhamos presente que ele é um Santo, considerado por Nosso
Senhor como o maior homem nascido até aquele momento. Logo, não se trata de uma
incerteza sobre a identidade de Cristo, que já fora apresentado por ele em
termos claríssimos: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1,
29); “Depois de mim vem outro mais poderoso do que eu, ante o qual não sou
digno de me prostrar para desatar-Lhe a correia do calçado. Eu vos batizei com
água; Ele, porém, vos batizará no Espírito Santo” (Mc 1, 7-8). João Batista
sabia perfeitamente quem era Jesus, e não precisava de qualquer explicação.
Então, por que os envia com a incumbência de indagar a respeito do
caráter messiânico de Nosso Senhor? Fiel à sua missão de apontar o Filho de
Deus, arde de desejo que todos reconheçam o Salvador que está entre eles e quer
transmitir aos outros a sua felicidade de tê-Lo visto e ser seu contemporâneo.
São João Batista encontrava-se preso na torre de Maqueronte ―
inacessível fortaleza de Herodes, localizada nas proximidades do Mar Morto, a
1158 m de altitude sobre o nível deste 2 ―, sem qualquer possibilidade de atuação. Em dado momento,
chegaram-lhe aos ouvidos, por meio de seus seguidores, as repercussões dos
grandes e numerosos milagres operados por Jesus. Esta pareceria ser a hora
propícia para mandar um recado Àquele que é o Criador do universo, o
Onipotente: “Senhor, estou preso, libertai-me!ˮ. Por um simples ato de vontade
de Deus, Nosso Senhor, as correntes se desfariam, as algemas se abririam e ele
sairia da prisão. Mas o Precursor não pensava em si ou nos infortúnios padecidos
naquele estado e nem sequer lhe ocorreu a ideia de pedir um alívio. Para ele
era indiferente morrer ou viver: sua preocupação voltava-se exclusivamente para
a glória do Redentor.
Conceito messiânico desviado
Por isso, João Batista se empenhava em criar condições para que Nosso Senhor Se manifestasse cada vez mais. Ele já estava extenuado pelas vãs tentativas de convencer seus discípulos, que insistiam numa concepção política a respeito do Messias. Anelavam um rei humano que ascendesse ao trono de Israel e desse força ao seu povo. Conforme iam acompanhando o ministério de Nosso Senhor Jesus Cristo tomavam-se de insegurança, porque Ele era um Homem capaz de fazer milagres estrondosos, embora não Se pronunciasse em matéria de política e pregava o advento de um misterioso Reino de Deus que não parecia ser deste mundo. Instigados pela inveja, custava-lhes acreditar que Aquele fosse o Cristo, por não corresponder às suas expectativas e ao modelo por eles idealizado. Considerações como estas pululavam em suas mentes: “É nascido em Nazaré...ˮ; “O pai d’Ele era carpinteiro!ˮ; “Mas será, de fato, o Messias?ˮ (cf. Mt 13, 54-57). Aliás, algo análogo se passava em relação ao próprio Precursor, o qual não havia preenchido as esperanças nele depositadas quando começaram a segui-lo.
Esta cegueira, sem dúvida, deixava São João indignado, até que percebeu
restar apenas uma saída para quebrar aquela frieza: que eles tivessem contato
direto com Jesus, o único que poderia transformá-los a fim de compreenderem
quem Ele era. Tudo o que estava ao seu alcance havia feito por eles, não
poupando esforços para comunicar-lhes a extraordinária alegria na qual se
sentia imerso por exercer sua missão de Precursor. Enviou-os, pois, confiante
em que Nosso Senhor fizesse por eles o que pessoalmente ele não conseguira, e
de que a conversa com o Mestre fosse ocasião para receberem uma graça que
agisse no fundo de suas almas e viessem a se converter. Essa persistência em
querer mais para os outros do que para si e em procurar torná-los felizes, de
uma felicidade sobrenatural, era característica do Precursor.
O Evangelista frisa: “Quando ouviu falar das obras de Cristo”, indicando
que São João discernira ser a hora apropriada para enviá-los, dada a forte
impressão causada pelos milagres de Jesus. É no teor da pergunta que fica
consignado o fato de ansiarem por um Messias segundo outros padrões: “És Tu,
Aquele que há de vir ou devemos esperar um outro?”.
Em contraste com a despretensão de seu mestre, que vivia completamente
esquecido de si e preocupado com eles, os discípulos de São João não pediram a
Nosso Senhor por aquele que os formara. Tinham-lhe tão pouco amor que não se
interessaram em tirá-lo do cárcere e livrá-lo daquela penosa situação. Esses
somos nós, sempre que nos fechamos e só atendemos às solicitações do egoísmo e
às nossas vantagens pessoais, mais dedicados a nós mesmos do que a Deus e ao
próximo. Em consequência, a felicidade foge de nós e cresce o egocentrismo.
Os milagres provavam que Ele era o Messias
4 Jesus
respondeu-lhes: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo: 5 os cegos recuperam a
vista, os paralíticos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”.
A resposta de Nosso Senhor, cheia de sabedoria, não foi: “Eu sou o
Messias”. Provavelmente, dado o estado de espírito de quem o interrogava, uma
declaração nesses termos não seria bem recebida. Sua afirmação oferecia
elementos para que eles compreendessem a verdade por si, como se dissesse:
“Analisem o que acontece, vejam as minhas obras e as suas consequências, e em
função disso tirem conclusões. Quem vê todos os prodígios que Eu faço e não
acredita que sou o Messias, não tem inteligência”. E recorre aos vaticínios de
Isaías, bastante conhecidos por todos os israelitas (cf. Is 26, 19; 29, 18; 35,
5; 42, 7; 62, 1), como uma confirmação. De fato, qualquer cego que gritasse à
distância pedindo a cura saía de sua presença enxergando e dando graças a Deus.
Havia também devolvido a saúde a inúmeros paralíticos, como o da piscina de
Betesda (cf. Jo 5, 1-9) ou aquele que fora descido pelo teto (cf. Mc 2, 3-12).
Bastava tocar nos leprosos que as chagas desapareciam, ou nos surdos e mudos,
que eram sanados. Ele acabara de ressuscitar um morto com grande estrépito no
país, como acima foi recordado, e estava levando a Boa-nova a todos. Por meio
dela, muitos adquiriam ― é este o maior milagre! ― a noção de que eram
deficientes, não conseguiam caminhar por si nas vias da virtude, e tomavam
consciência de necessitarem do auxílio de Deus. Estes eram evangelizados e
acolhiam a doutrina com entusiasmo.
Entretanto, se escandalizaram...
6 “Feliz aquele que
não se escandaliza por causa de Mim!”.
Por fim, Nosso Senhor completa a resposta com estas palavras, sinal
claro de que os discípulos de João Batista não aceitaram bem a mensagem e
estavam com inveja da graça fraterna. Ao invés de se alegrarem por comprovar
que outro fora favorecido pela benevolência de Deus, numa manifestação patente
de seu poder, veem na Pessoa de Jesus uma sombra projetada sobre si
mesmos.
Tendo concluído que o objetivo de Nosso Senhor não era a restauração do
reino de Israel, sentiram-se frustrados, pois imaginavam que, pelo fato de
haverem abandonado tudo para seguir o Precursor, seriam os primeiros junto ao
ao Messias. Percebem agora que estão em segundo plano e, para se justificarem,
têm de encontrar n’Ele defeitos que demonstrem, de acordo com seus conceitos,
não ser o Enviado: “Ele só fala do Pai, do Reino Eterno, da vida após a morte;
vem pregando uma ressurreição...ˮ. Em suma, escandalizaram-se, a exemplo dos
fariseus, que decerto ali estavam e se tinham como os primeiros, muito acima
dos discípulos de São João. Vaidosos de seu conhecimento da Lei e da perfeita
observância das regras, viam os milagres de Jesus e diziam que agia pelo poder
dos demônios (cf. Mt 9, 34).
Mais ainda, os próprios Apóstolos receavam que Ele enfrentasse as
autoridades do establishment israelita, com receio de perder a
oportunidade de seguir uma grande carreira baseada em seus dotes excepcionais,
da qual eles tirariam o consequente proveito. Também para os Doze aquele
Messias não correspondia ao que pretendiam e se escandalizavam. Por isso Nosso Senhor
afirma: “Feliz aquele que não se escandaliza por causa de Mim!”, ou seja,
“Feliz aquele que, apesar de o mundo defender que a alegria se obtém de outra
forma, sabe que ela está na cruzˮ.
Os lábios divinos elogiam o Precursor
7 Os discípulos de João partiram, e Jesus começou a falar às multidões
sobre João: “O que fostes ver no deserto? Um caniço agitado pelo
vento? 8 O que fostes ver?
Um homem vestido com roupas finas? Mas os que vestem roupas finas estão nos
palácios dos reis. 9 Então, o que
fostes ver? Um profeta? Sim, Eu vos afirmo, e alguém que é mais do que
profeta. 10 É dele que está
escrito: ‘Eis que envio o meu mensageiro à tua frente; ele vai preparar o teu
caminho diante de Ti’”.
Em seguida partiram os discípulos de João, sem que o Evangelho registre
se reconheceram Jesus como Messias ou não. Contudo, as palavras de Nosso Senhor
são uma proclamação evidente de sua identidade, pois Ele evoca as profecias e
prova que as está cumprindo.
Após a saída deles, Jesus passa a falar sobre aquele que está
encarcerado, elogiando-o por não ser um caniço agitado pelo vento ― uma pessoa
inconstante ―, mas um homem firme, inabalável e íntegro, semelhante a uma torre
ou uma rocha. Em sua austeridade recusara-se a usar roupas finas, como faziam
os que se embrenhavam pelas vias políticas sem se importarem com o aspecto
religioso, preocupados antes de tudo em traçar uma carreira social brilhante
junto aos poderosos deste mundo.
Nosso Senhor quer ainda mostrar que a grandeza de João vai muito além de
sua condição de profeta. Este, como é sabido, está incumbido de anunciar,
ensinar e apontar, de acordo com a vontade de Deus, os caminhos do dever, quase
sempre contrários às vias libertinas propostas pelo mundo. Ora, por que
ultrapassou o Precursor o marco do profetismo? Por ter sido também chamado ―
além de proclamar a verdade ― a preparar as veredas do Homem-Deus. É o que
comenta São João Crisóstomo: “Em que, pois, é maior? No fato de estar mais
próximo d’Aquele que tinha vindo. […] Assim como numa comitiva régia os que se
encontram mais próximos à carruagem real são os mais ilustres entre todos,
assim João, que aparece momentos antes do advento do Senhor. Notai como por
causa disso [Jesus] declarou a excelência do Precursor”.3
Com profundidade e beleza, o Cardeal de La Luzerne exalta a figura de
São João Batista, ressaltando seu papel ímpar na História: “Ele encerra a
sucessão dos profetas e abre a missão dos Apóstolos. Ele pertence ao mesmo
tempo à Antiga Lei e à Nova, e se eleva entre uma e outra como uma coluna
majestosa, para marcar o limite que as separa. Profeta, apóstolo, doutor,
solitário, virgem, mártir, ele é mais que tudo isso, porque é tudo isso ao
mesmo tempo. Ele enfeixa todos os atributos da santidade, e ao juntar em si
mesmo tudo aquilo que constitui as diferentes classes de Santos, forma entre
eles uma classe particular”.4
O valor do Reino dos Céus
11 “Em verdade vos
digo, de todos os homens que já nasceram, nenhum é maior do que João Batista.
No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele”.
À primeira vista este versículo parece incompreensível, pois como pode o
maior dentre os já nascidos ser o menor quando comparado aos habitantes do
Reino dos Céus? Aqui Nosso Senhor Se refere a duas etapas e, portanto, a dois
diferentes nascimentos. São João Batista recebeu a vida da graça no claustro
materno de Santa Isabel, pelos efeitos da voz de Nossa Senhora, e nasceu sem
pecado original. Nessa perspectiva, é o maior, uma vez que nenhum outro teve o
privilégio de ser batizado dessa sublime maneira. Porém, para entrar no Céu
faz-se necessário nascer para a eternidade, e tão mais importante é o Reino
Eterno que o mais elevado dos homens deste mundo torna-se pequeno perto dos
justos que já gozam da visão beatífica. É o que defende São Jerônimo: “todo
santo que já está com Deus é maior do que o que ainda se encontra em batalha.
Pois uma coisa é possuir a coroa da vitória e outra estar ainda lutando na
linha de combate”.5
Apesar da diferença entre o estado dos Bem-aventurados na glória e dos
homens justos que ainda integram as fileiras da Igreja militante, todos os que
se encontram junto a Deus obtiveram suas coroas seguindo a mesma via trilhada
por São João Batista, que o fez grande neste mundo e maior ainda no outro. A
sua glória deve-se à fidelidade a toda prova aos desígnios divinos pela
aceitação do sofrimento, e isso o tornou digno do maior elogio feito por Nosso
Senhor a alguém em todo o Evangelho.
III – O CAMINHO
DA VERDADEIRA FELICIDADE
A Liturgia deste domingo nos convida à alegria, mostrando o rumo para alcançá-la. O contraste entre os protagonistas da cena de hoje é notório: enquanto São João está no cárcere e se submete a este padecimento com plena resignação, animado pela felicidade de ser íntegro e cumprir seu chamado, os discípulos veem-se privados dessa felicidade pela inveja que os consome. Semelhante amargura acompanha Herodes Antipas, escravizado por suas paixões, como também os fariseus que vivem à procura de louvor e incenso, movidos pela sede de glória terrena. Os próprios Apóstolos tampouco estão inteiramente felizes nesse período da vida pública do Divino Mestre, pois aguardavam um Messias diferente do que têm diante de si.
A alegria, então, onde está? Na loucura da Cruz. Nosso Senhor Jesus
Cristo não podia estar triste nem abraçar um caminho de depressão, e, todavia,
escolheu o do Calvário para nos dar o exemplo e indicar que a conquista da
felicidade comporta a adversidade e a dor. Lembremo-nos de seu ensinamento: “Se
alguém quiser vir comigo, renuncie-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-Me” (Mt
16, 24). A ideia de que a felicidade exclui o sofrimento é infundada, pois uma
vez que somos tendentes ao mal pela queda de nossos primeiros pais, o
sofrimento tornou-se um elemento indispensável para a nossa santificação.
Com efeito, o problema do sofrimento não está tanto naquilo que o
ocasiona, mas no modo como é suportado. Ele existe em todas as situações da
vida e pede de nossa parte o ânimo que esta Liturgia apresenta, do qual Maria
Santíssima é modelo. Ela aceitou todos os padecimentos que se abateriam sobre
seu Divino Filho e Se dispôs a dar seu contributo ao sacrifício redentor, pois
queria a salvação de todos.
Nossa finalidade é pertencer a Jesus
Feito para pertencer a Nosso Senhor Jesus Cristo, o ser humano se realiza na medida em que assume com seriedade sua condição de batizado, membro da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, dando passos adiante na prática da virtude e na busca da santidade. Quanto mais avançamos nessa via, maior é a alegria que nos invade, assim como o desejo de progredir ainda mais.
Consideremos de frente nosso destino eterno enquanto esperamos a vinda
do Salvador. Na noite de Natal Ele nascerá de novo, misticamente, e se
aplicarmos em nossas vidas a lição desta Liturgia nascerá também em nossos
corações, onde encontrará uma digna pousada para Se recolher.
1 Cf. VON CLAUSEWITZ, Karl. Grundgedanken über Krieg und Kriegführung. Leipzig: Insel, 1915, p.47-48.
2 Cf. SCHUSTER, Ignacio; HOLZAMMER, Juan B. Historia Bíblica. Nuevo
Testamento. Barcelona: Litúrgica Española, 1935, t.II, p.157-158.
3 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XXXVII, n.2. In: Obras. Homilías sobre el
Evangelio de San Mateo (1-45). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.I, p.734.
4 LA LUZERNE, César-Guillaume de. Explication des Évangiles des Dimanches. 9.ed. Paris: Mequignon Junior,
1847, t.I, p.42.
5 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.II (11, 2-16, 12), c.11,
n.80. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC,
2002, v.II, p.131.
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