Tentações de Cristo National Gallery of Art - Washington |
Naquele tempo, 1 o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para ser tentado pelo diabo. 2 Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois disso,
teve fome. 3 Então, o tentador aproximou-se e disse a Jesus: “Se és Filho de Deus,
manda que estas pedras se transformem em pães!” 4 Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas de
toda palavra que sai da boca de Deus”. 5 Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre a parte mais
alta do Templo, 6 e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui
abaixo! Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, e
eles Te levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra’ ”. 7 Jesus lhe respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu
Deus!’ ” 8 Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito
alto. Mostrou-Lhe todos os reinos do mundo e sua glória, 9 e Lhe disse: “Eu Te darei tudo isso, se Te ajoelhares diante de mim,
para me adorar”. 10 Jesus lhe disse: “Vai-te embora, satanás, porque
está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a Ele prestarás culto”. 11 Então o diabo O deixou. E os Anjos se aproximaram e serviram a Jesus
(Mt 4, 1-11).
I DOMINGO DA QUARESMA
Sua vitória é nossa força
Mons. João Clá Dias, EP |
Ao triunfar sobre o demônio e as tentações no
deserto, Nosso Senhor nos dá a principal garantia de que também nós,
sustentados pela graça, podemos transpor incólumes todas as lutas espirituais.
I – “A VIDA DO HOMEM
SOBRE A TERRA
É UMA LUTA”
Os fenômenos da natureza humana, mesmo os mais comuns, não raras vezes
obedecem a leis que, ao serem analisadas com atenção, podem nos proporcionar
valiosas lições. E o que acontece quando sofremos uma fratura e somos
obrigados, por exemplo, a manter engessado durante longo período um braço ou
uma perna. No momento em que o gesso é retirado comprovamos que o membro
atingido, embora antes fosse forte e vigoroso, tornou-se flácido. A musculatura
ficou atrofiada pela imobilidade, sendo necessário submetê-la a sessões de
fisioterapia para readquirir seu aspecto normal. Algo parecido se verifica com
o homem que trabalhou a vida inteira e, ao se aposentar, opta por uma
existência sedentária, permanecendo sentado na maior parte do dia numa
confortável cadeira de balanço. Tal regime o expõe, com o tempo, a alguma grave
doença, pois a constituição do ser humano exige movimento, esforço e combate.
Isso tem sua reversibilidade na vida espiritual, e até com maior razão.
Nossa alma precisa exercitar-se constantemente na virtude a fim de aderir ao
bem com toda a força, para o que as dificuldades, sobretudo a tentação,
contribuem com um importante estímulo, como recorda Santo Agostinho: “Nossa
vida neste desterro não pode existir sem tentação, já que o nosso progresso é
levado a cabo pela tentação. Ninguém se conhece a si mesmo se não é tentado;
nem pode ser coroado se não vence; nem vence se não peleja; nem peleja se lhe
faltam inimigo e tentações” .
A Liturgia deste 1º Domingo da Quaresma nos ensina a reconhecer a
necessidade e o valor da tentação.
O Paraíso Terrestre:
uma maravilha que excede a natureza humana
A primeira leitura (Gn 2, 7-9; 3, 1-7)
relata como Deus, depois de criar o homem, o introduziu no Paraíso Terrestre
onde “fez brotar da terra toda sorte de árvores de aspecto atraente e de fruto
saboroso ao paladar, a árvore da vida no meio do jardim e a árvore do
conhecimento do bem e do mal” (Gn 2,9). Segundo São Tomás de Aquino,2 era um
lugar muito superior à natureza do homem — moldado com a terra deste mundo e só
depois levado para o Eden (cf. Gn 2, 7-8) —, mas ao qual ele se adequava em
virtude do dom sobrenatural da incorruptibilidade, infundido por Deus. Podemos
supor que a natureza vegetal ali era esplendorosa, com flores, frutos e
folhagens dotados de um brilho especial, e animais mais perfeitos que os
atuais.
Apesar de estarem cercados de
maravilhas, algo faltava a nossos primeiros pais: não tinham o mérito da fidelidade
face às vicissitudes e reveses, o mérito da luta. A este propósito, comenta o
Prof. Plinio Corrêa de Oliveira: “Até aquele momento, que luta tinha travado
Adão? Nenhuma. Ele não tinha más inclinações, ele não tinha [defeitos] nativos,
[...] ele não tinha apetência para o mal. [...] No Paraíso havia tudo, exceto
um herói!”.3
Em meio ao esplendor, surge a
tentação
Nessa situação de felicidade — narra o
Gênesis —, aproxima-se o demônio para tentá-los através da serpente, “o mais
astuto de todos os animais dos campos que o Senhor Deus tinha feito” (3, la).
Ladino, ele inicia um diálogo com Eva e lhe indaga: “E verdade que Deus vos
disse: ‘Não comereis de nenhuma das árvores do jardim?” (Gn 3, lb). Deturpação
característica do pai da mentira, pois Deus não havia dito isto a Adão, apenas
proibira de comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, acrescentando
uma advertência: “no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente” (Gn 2,
17). Uma vez estabelecida a conversa, o demônio já havia alcançado metade de
seu intento. Só faltava levá-los à queda.
Adão e Eva sucumbiram à tentação, mas o
Evangelho deste domingo nos ensina a opor resistência ao inimigo infernal,
seguindo as pegadas de Nosso Senhor. Por ter assumido a natureza humana, Jesus
adquiriu o direito de nos conferir seus méritos e força para enfrentar o
demônio, tornando-nos também triunfantes à medida que nos unimos a Ele. E neste
episódio nos dá uma lição de como combater.
II - NOSSO SENHOR QUIS SER TENTADO
A tentação de Jesus se deu no início de
sua vida pública, logo depois de ter recebido o Batismo de São João.
Estendeu-se ao longo de quarenta dias no deserto de Judá, região isolada,
inóspita e habitada por feras selvagens. Segundo a tradição, Ele permaneceu em
oração e rigoroso jejum numa elevação existente nas proximidades de Jericó,
hoje chamada Monte da Quarentena. Encontramos uma pré-figura desse
acontecimento nas vidas de Moisés e Elias, que também se retiraram pelo mesmo
período durante o desempenho de sua missão profética (cf. Ex 34, 28; I Rs 19,
5-8).
Deus permite a tentação para o nosso bem
Naquele tempo, 1 o Espírito conduziu Jesus ao deserto, para
ser tentado pelo diabo.
Neste primeiro versículo, chama-nos
especial atenção o fato de Nosso Senhor ter sido conduzido pelo Espírito Santo.
No Batismo do Jordão Ele fora glorificado pelo Pai, cuja voz se ouviu enquanto
o Paráclito descia sob a forma de uma pomba, em circunstâncias que à primeira
vista diríamos muito propícias para inaugurar seu período de pregação. Ao invés
disso, quis Se dirigir ao deserto. Sua atitude nos mostra que quando somos
chamados a realizar alguma obra importante devemos rezar antes, tal como a
Igreja recomenda fazer, no início de todas as atividades.
Disso nos dá exemplo o Filho de Deus ao
escolher o isolamento. E não somente com vistas à contemplação, mas também para
“ser tentado pelo diabo”, como deixa claro São Mateus. Por que motivo isso
teria sido permitido por Deus? Ora, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima
Trindade, Nosso Senhor era incapaz de sofrer a menor tentação; como Homem,
todavia, quis padecê-la para vencer o demônio e quebrar seu poder. Assim, o
anjo decaído seria derrotado por uma criatura humana.
Satanás, por sua vez, não tinha
conhecimento de que Nosso Senhor Jesus Cristo era Deus, e apenas julgava que
fos se seu Filho, sem possuir a mesma natureza do Pai. Ignorava também o
mistério da união hipostática, embora reconhecesse que Jesus estava na graça de
Deus. Em suma, o maligno arrastava uma forte insegurança a respeito da
identidade de Cristo, e daí o interesse em tentá-Lo para descobrir quem era, na
realidade. Seu objetivo, porém, terminará frustrado e ele se verá obrigado a
partir sem saber o que desejava, pois Nosso Senhor não lhe dará possibilidade
de chegar a uma conclusão, segundo comenta São Jerônimo: “Em todas as tentações
o diabo faz isto para saber se é Filho de Deus, mas o Senhor mede a resposta de
modo a deixá-lo na dúvida”.4 E evidente que Jesus jamais poderia ser logrado
pela astúcia do demônio, uma vez que era seu Criador.
Quando a tentação se abate sobre nós,
temos a tendência de perguntar: “Por que Deus a permite?”. Certamente para o
nosso bem, caso contrário Nosso Senhor não a teria experimentado. Lembremo-nos
de que Jesus é conduzido pelo Espírito Santo, e quem permite a tentação é o
Pai, o qual dissera pouco antes: “Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha
afeição” (Mt 3, 17). Se o Pai manifesta sua complacência pelo Filho e, em
seguida, consente em sua ida para o deserto, por que não quererá que nós, que
recebemos a vida divina por meio d’Ele, sigamos o mesmo caminho?
De fato, o Pai quis que tivéssemos um
paradigma, Cristo Jesus, e, ao passarmos por tentações, agíssemos em
conformidade com Ele. Não podemos tomar a provação como um desastre ou um sinal
de decadência na vida espiritual, pois se assim fosse deveríamos concluir que
Nosso Senhor havia passado por uma crise espiritual nesse episódio, o que é
absurdo e até blasfemo. Muito pelo contrário, deitemos especial empenho em
analisar o procedimento de Jesus, tendo presente que o relato das tentações é
tão só uma síntese do que na realidade aconteceu. Vários Santos mostraram-se
favoráveis à hipótese de que Ele tivesse sido provado inúmeras vezes e de todos
os modos, no decorrer dos quarenta dias, como já tivemos oportunidade de
comentar.5
O demônio se aproveita das fraquezas
humanas
2 Jesus jejuou durante quarenta dias e quarenta noites, e, depois
disso, teve fome.
O recolhimento de Nosso Senhor no
deserto atinge seu auge ao cabo de quarenta dias, e é esse o momento escolhido
por satanás para tentá-Lo de forma particular, o que novamente encerra um
ensinamento, pois muitas vezes as piores provações se abatem sobre nós nas
melhores fases da vida espiritual. Quando começamos a dar passos firmes nas
vias da virtude, o demônio costuma intensificar as tentações, visando impedir a
nossa santificação. Este versículo mostra ainda como Jesus padecia as
contingências físicas próprias à natureza humana, das quais o demônio tirou
proveito para pô-Lo à prova. Depois de enfrentar longos dias sem comer nem
beber, só uma sustentação sobrenatural O mantinha vivo. Ele estava exangue,
consumindo suas últimas energias, e o tentador, por sua vez, encontrava-se à
espreita para agir. Tal é o artifício que conosco emprega satanás: ele se
aproveita das debilidades humanas. No nosso caso, de maneira diversa ao que se
passava com Nosso Senhor, sofremos as fraquezas decorrentes do pecado, como a
concupiscência, a inclinação para o mal e as paixões desregradas. Se
consentimos nas propostas do espírito das trevas, ele alcança o objetivo
desejado ao nos tentar, fazendo-nos morrer para a vida sobrenatural.
A tentação tem seu início na
sensibilidade
3 Então, o
tentador aproximou-se e disse a Jesus: ‘Se és Filho de Deus, manda que estas
pedras se transformem em pães!”
O demônio, conforme vimos, não sabia ao
certo se Jesus Cristo era o Messias. E provável que possuísse uma vaga noção a
respeito disso, por ter-lhe sido revelado quando era um Anjo de luz no Céu,
mas, ainda neste caso, nem todo o plano divino sobre a Encarnação chegou a ser
de seu conhecimento. Recordemo-nos de que São Paulo afirmou ter sido chamado a
ensinar verdades ignoradas inclusive pelo mundo angélico (cf. Ef 3, 10).
"Se és Filho de Deus, manda que estas pedras se transformem em pães!" (Mt 4,3) Tentações de Cristo- Igreja de São Filipe s São Tiago, Herdecke (Alemanha) |
Dado o impasse no qual estava, o
tentador decidiu investir contra o Homem-Deus, tanto para descobrir quem Ele
era quanto para induzi-Lo a cair no apego à matéria. Como no Paraíso, deu
Início à conversa usando um método muito velhaco, de acordo com a necessidade
da ocasião e os elementos existentes no local. Observam os exegetas que o deserto
onde Nosso Senhor Se encontrava tinha pedras de aspecto muito aprazível, com
formato arredondado e cor dourada, parecido ao dos deliciosos pães ázimos
consumidos naquele tempo no Oriente.6 Portanto, em certo sentido, semelhantes
ao fruto proibido do Paraíso, que era “atraente para os olhos e desejável” (Gn
3, 6), dando a ideia, sobretudo para quem tinha poder para isso, de serem
transformáveis em pão. Bastaria um ato de sua vontade e Jesus as converteria
num magnifico alimento saído do forno de sua palavra criadora, suficiente para
Lhe saciar a fome. Ele, que ainda multiplicaria pães e peixes, transmutaria a
água em vinho e operaria outros milagres sobre a comida, estava em condições
favoráveis de transformar aquelas pedras. E satanás O estimula, em sua humanidade,
para que use de suas capacidades sobrenaturais.
Eis a tática empregada pelo anjo das
trevas na hora da tentação: começa por excitar a sensibilidade. Ao agir assim,
atinge grande número de almas, sobretudo fomentando o interesse pelos bens
materiais. Estes, e em especial o dinheiro, são simbolizados pela pedra e pelo
pão, e constituem o maior empecilho para a santificação dos que põem sua
esperança nos valores deste mundo.
O demônio mente ao fazer esta proposta
a Nosso Senhor, pois promete a vida — comer, naquela circunstância, era uma
questão de subsistência —, mas é à morte que quer conduzi-Lo, ao sugerir que
use seu poder divino para satisfazer uma mera necessidade humana. Na verdade,
Ele tinha direito de operar o milagre, mas o demônio não o sabia. Esta passagem
nos confirma como satanás nunca promove a vida nem produz união, pois só se
empenha em levar as almas ao pecado e, após lograr a queda de muitas delas,
visa o aniquilamento da sociedade.
Uma vez lançado o desafio, iria Nosso
Senhor dialogar com o tentador?
Com o diabo não se conversa
4 Mas Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Não só de pão vive o homem, mas
de toda palavra que sai da boca de Deus' ”.
Tomando uma atitude radical, Ele cortou
a conversa com o demônio. Como podemos comprovar nesta e nas tentações
seguintes, suas respostas são taxativas, dadas com a nítida intenção de
encerrar o colóquio. Além disso, o argumento utilizado por Jesus baseia-se na
autoridade da Escritura, contra a qual não há recurso. Ao evocar as palavras do
Deuteronômio, “não só de pão vive o homem” (8, 3), Ele como que afirmava: “Não
só de pão, mas também de pão”. Reconhece a necessidade do alimento e até do
dinheiro, porém, ensina que devem ser utilizados com a primeira atenção posta
em Deus. Seu divino exemplo é de desprendimento das coisas concretas.
Outra lição que daí decorre diz
respeito ao modo de proceder de Jesus em face de uma necessidade pessoal.
Aquilo que o demônio queria que realizasse em proveito próprio, ao converter as
pedras em pão, Ele o faz depois, em favor de terceiros, nas Bodas de Caná, ao
converter a água em vinho (cf. Jo 2, 1-11), e multiplicando pães e peixes ao
longo da vida pública (cf. Mt 14, 15-21; Mc 6, 30-44; Lc 9, 10-17; Jo 6, 1-13).
Sua conduta é perfeita, pois precisamos dar aos Outros aquilo que o maligno
sugere que obtenhamos para nós mesmos, e fazer-lhes o bem que gostaríamos de
receber.
Movido por sua característica
pertinácia, o anjo mau não desiste e faz nova proposta.
A quimera de uma religião sem cruz
Então o diabo levou Jesus à Cidade Santa, colocou-O sobre a parte mais
alta do Templo, 6 e Lhe disse: “Se és Filho de Deus, lança-Te daqui abaixo!
Porque está escrito: ‘Deus dará ordens aos seus Anjos a teu respeito, e eles Te
levarão nas mãos, para que não tropeces em alguma pedra”. 7 Jesus lhe
respondeu: “Também está escrito: ‘Não tentarás o Senhor teu Deus!”
Discutem os autores se o demônio foi
caminhando com o Divino Mestre até a parte mais alta do Templo ou se usou de
suas faculdades angélicas para conduzi-Lo até lá.7 Grande parte deles sustenta
que O levou pelos ares, para dar-Lhe a sensação de que tinha muito poder.
Insensatez, pois o tentador não sabia que Jesus Cristo, enquanto Segunda Pessoa
da Santíssima Trindade, o criara e lhe outorgara a capacidade de realizar este
prodígio. “Levava Cristo como se Ele estivesse obrigado, sem dar-se conta de
que ia voluntariamente”.8 No alto do Templo o diálogo continua, e como Nosso
Senhor silenciou satanás na primeira tentação valendo-Se da Escritura, ele
agora contra-ataca, com inteligência, utilizando a mesma arma. Seu argumento
consiste em alegar a proteção que Deus Lhe daria se Ele Se lançasse do pináculo
do edifício sagrado. Não obstante, “as falsas flechas do diabo, tiradas das
Escrituras, são quebradas por Cristo com os escudos verdadeiros das próprias
Escrituras”.9
Nesta tentação o demônio propunha uma
caricatura da Religião verdadeira, excluindo o papel da dor, do sacrifício e do
caminho autêntico para a santidade. Uma religião baseada no fabuloso, no
portento e no prodígio, porque, do principal local de culto de Israel desceria
de forma fulgurante o Messias, muito diferente do varão crucificado que Nosso
Senhor estava destinado a ser, por amor à humanidade pecadora. A resposta
admite dois sentidos, para confundir o diabo e dar a conversa, mais uma vez,
por concluída: “Não me tentes porque Eu sou Deus” ou “Eu não posso fazer isto,
porque seria tentar a Deus”. Nós, porém, podemos interpretá-la como um
ensinamento a respeito da resignação que deve caracterizar o nosso
relacionamento com Jesus. É lícito pedirmos milagres e até manifestações
grandiosas, mas cientes de que se não formos atendidos a nossa fé tem de
permanecer intacta.
O príncipe das trevas sempre tira o que
promete
8 Novamente, o diabo levou Jesus para um monte muito alto. Mostrou-Lhe todos
os reinos do mundo e sua glória, 9 e Lhe disse: “Eu Te darei tudo isso, se
Te ajoelhares diante de mim, para me adorar”, 10 Jesus lhe disse: “Vai-te
embora, satanás, porque está escrito: ‘Adorarás ao Senhor teu Deus e somente a
Ele prestarás culto”. 11 Então o diabo O deixou, E os Anjos se aproximaram e
serviram a Jesus.
Apesar de ter sido vencido duas vezes,
o demônio deseja chegar ao último ponto: ser adorado por Nosso Senhor, o que
suporia uma negação do culto a Deus. Para isto ele oferece o domínio temporal
que — sempre cobiçado ao longo da História — levou muitos homens a seguir os
ídolos, abandonando o verdadeiro Deus. No entanto, com uma resposta que não
prima pela diplomacia, Jesus, em primeiro lugar, expulsa o príncipe das trevas
e, depois, ainda sublinha que apenas ao Senhor — ou seja, a Ele mesmo — é
devido o culto que o maldito pretendia desviar para si.
Grande é o contraste entre Adão e Nosso
Senhor Jesus Cristo. O primeiro deu ouvidos à recomendação da serpente,
transmitida por Eva, e comeu o fruto, perdendo aquilo que o demônio prometera:
“sereis como Deus” (Gn 3, 5). Pois com o pecado a vida divina se extinguiu em
sua alma, enquanto se tivesse correspondido ao mandado do Senhor receberia um
acréscimo de felicidade, manteria o estado de graça e teria feito notável
progresso na vida espiritual. Portanto, aquilo que o tentador fingia querer dar
foi justamente o que lhe roubou. A Nosso Senhor ele ofereceu o serviço dos
Anjos e todos os tesouros da Terra, coisas que era incapaz de conceder, mas que
foram entregues a Jesus-Homem junto com a realeza sobre toda a humanidade e
sobre a ordem da criação, por ter vencido satanás e ter abraçado os tormentos
do Calvário. Eis um princípio que deve nortear constantemente a nossa vida, até
a hora da morte: nunca podemos dialogar com o demônio, criatura maldita que
sempre tira aquilo que promete. Devemos encerrar qualquer conversa com ele logo
no início, com o apoio da Palavra de Deus, à imitação de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
III - O VALOR DAS TENTAÇÕES
Na segunda leitura (Rm 5, 12.17-19),
São Paulo sintetiza o ensinamento da Liturgia deste 1 Domingo da Quaresma: se
“o pecado entrou no mundo por um só homem [...], pela obediência de um só, toda
a humanidade passará para uma situação de justiça” (Rm 5, 12.19). Sua afirmação
deixa patente como toda graça, força e poder foram franqueados ao gênero humano
pela fidelidade de Cristo, modelo supremo no combate às tentações.
Existem doentes com uma espécie de
complexo causado por verem pessoas saudáveis, a quem muitas vezes gostariam de
transmitir suas enfermidades para aliviar o instinto de sociabilidade ferido,
por se sentirem diferentes ou inferiores. Assim também age satanás. Ao cair no
inferno, por ter-se revoltado contra Deus, passou a detestar os que batalham para
obter a salvação, por serem seus inimigos e adoradores de quem ele odeia.
Então, quer o demônio a nossa perdição e permanece à espreita, andando em
derredor, “como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (I Pd 5, 8), pronto
para nos empurrar precipício abaixo e nos lançar na mesma infelicidade eterna
na qual ele se jogou.
A tentação é um benefício
Deus lhe permite tentar-nos, com vistas
ão nosso benefício, para nos dar oportunidade de adquirir força, experiência e
sagacidade na luta contra ele, e, derrotado este, outorgar-nos o prêmio de não
ter cedido. Mas se tivermos a desgraça de sucumbir, não nos esqueçamos do Salmo
Responsorial (cf. Sl 50, 3a), que diz: “Piedade, ó Senhor, tende piedade, pois
pecamos contra Vós”. Estas palavras do rei Davi, o perfeito arrependido,
recordam como, desde que reconheçamos nosso pecado com verdadeira contrição e
desejo de nunca recair na falta cometida, nossas culpas serão apagadas. Quando
nos apegamos a Nosso Senhor e à misericórdia de Nossa Senhora, recebemos o consolo
de sermos perdoados.
Foi o que aconteceu a Adão e Eva. À
medida que foram comprovando as consequências da falta cometida, deram-se conta
de que não valera a pena ter comido o fruto proibido e, sem dúvida, choraram
seu crime. Quantas vezes algo semelhante se passa conosco quando, depois de ter
percorrido um bom trecho da vida, olhamos para trás e verificamos que o pecado
não compensou. Nessas horas a lembrança de nossas quedas servirá para ilustrar
e fortalecer as atitudes do presente, ajudando-nos a tomar decisões bem firmes
e acertadas.
As tentações nos obtêm, sobretudo,
méritos para a eternidade. Tanto o santo quanto o pecador são tentados, e às
vezes o primeiro mais que o segundo, a julgar pelo modo atroz com que satanás
investiu contra Nosso Senhor. A grande diferença entre ambos é que um recusa as
solicitações e o outro se rende. Logo, ser tentado não é um desastre, pelo
contrário, pode ser até um bom sinal. De nossa parte é preciso não consentir e,
para isso, apoiemo-nos no auxílio divino, pois seria uma insensatez concebermos
nossas qualidades como o fator essencial na luta contra o demônio, o mundo e a
carne.
A nossa força está na graça
Diante da tentação, devemos crer na
força de Nosso Senhor Jesus Cristo e não nas nossas. No deserto, o diabo quis
convencê-Lo do quanto Ele era poderoso, capaz e apto a estar no centro dos
acontecimentos, e faz o mesmo conosco incitando-nos, pelo orgulho, a esquecer a
graça e a vida interior, imprescindíveis para resistir. Daí a necessidade
absoluta de nos aproximarmos dos Sacramentos com a maior frequência possível,
de “orar sempre sem jamais deixar de fazê-lo” (Lc 18, 1); de recorrermos à
mediação de Nossa Senhora e à intercessão dos Santos; de termos, enfim, ao
longo de todo o dia, a nossa primeira atenção posta no sobrenatural, como São
Paulo: “A minha vida presente, na carne, eu a vivo na fé no Filho de Deus, que
me amou e Se entregou por mim” (Gal 2, 20). Assim obteremos forças para
enfrentar todos os problemas, pois quem é negligente em sua vida interior perde
o principal instrumento de combate. O Apóstolo, confiante na ajuda divina, não
se sentia intimidado por nenhuma adversidade: “Quem nos separará do amor de
Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A
espada? Realmente, está escrito: ‘Por amor de Ti somos entregues à morte o dia
inteiro; somos tratados como gado destinado ao matadouro’. Mas, em todas essas
coisas, somos mais que vencedores pela virtude d’Aquele que nos amou. Pois
estou persuadido de que nem a morte, nem a vida, nem os Anjos, nem os
principados, nem o presente, nem o futuro, nem as potestades, nem as alturas,
nem os abismos, nem outra qualquer criatura nos poderá apartar do amor que Deus
nos testemunha em Cristo Jesus, Nosso Senhor” (Rm 8, 35-39).
Diante da tentação, recorramos à mediação de Nossa Senhora Nossa Senhora do Bom Conselho de Genazzano (Itália) |
Se uma criança recém-batizada tem mais
poder do que todos os infernos reunidos, os que possuem a vida divina nada
devem temer! Quando o inimigo nos assalta, unamo-nos ainda mais a Nosso Senhor
Jesus Cristo, animados pela lição deste início de Quaresma: para vencer todas as
tentações é indispensável contar com a graça divina.
1) SANTO AGOSTINHO. Enarratio in psalmum LX, n.3. In: Obras. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.519.
2) Cf. SAO TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica. T, q.102, a.4.
3) CORREA DE OLIVEIRA, Plinio. Palestra. São Paulo, 21 set. 1985.
4) SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.I (1,1-10, 42), c.4, n.21. In:
Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC, 2002, v.11,
p.39.
5) Cf. CLA DIAS, EP, João Scognamiglio. Convertei-vos e crede no
Evangelho. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.122 (Fey., 2012); p.10-i7; Os
benefícios das tentações. In:Arautos do Evangelho. São Paulo. N.62 (Fey.,
2007); p.10-I7
6) Cf. WILLAM, Franz Michel. A vida de Jesus no país e no povo de
Israel. Petrópolis: Vozes, 1939, p.85.
7) Cf. MALDONADO, SJ, Juan de. Comentario a los Cuatro Evangelios.
Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, v.1, p.213-214.
8) AUTOR INCERTO. Opus impeifectum in Matthceum. Homilia V, c.4, n.5: MG
56, 665.
9) SAO JERONIMO, op. cit., p.41.
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