A Transfiguração do Senhor Igreja da Assunção de Nossa Senhora San Gimignano (Itália) |
Naquele tempo, 1 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu
irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. 2 E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o Sol e as
suas roupas ficaram brancas como a luz. 3 Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. 4 Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se
queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para Moisés, e outra
para Elias”. 5 Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa
os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado,
no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!” 6 Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram
com o rosto em terra. 7 Jesus Se aproximou, tocou neles e disse:
“Levantai-vos, e não tenhais medo”. 8 Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser
somente Jesus. 9 Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes:
“Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado
dos mortos” (Mt 17, 1-9).
II DOMINGO DA QUARESMA
A Transfiguração
foi para os discípulos um antegozo do Céu e uma imensa consolação para
enfrentar as futuras provações da Paixão e Morte de Jesus. Também todo batizado
recebe consolações, como estímulo a perseverar no serviço de Deus.
I - A IMENSA FELICIDADE DO PARAÍSO CELESTE
São Paulo declara aos Coríntios ter
sido arrebatado ao Céu em certo momento de sua vida, e lá ter ouvido palavras
impossíveis de ser transmitidas e menos ainda de poder explicá-las: "...
foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis que não é lícito [ou
possível] a um homem repetir" (2 Cor 12, 4).
De fato, para os místicos torna-se
difícil externar suas experiências interiores, e daí bem podemos compreender o
quanto faltaram a São Paulo os termos de comparação para relatar o que com ele
se passara, pois, segundo o que ele mesmo havia dito anteriormente: "nem o
olho viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais passou pelo pensamento do homem o que
Deus preparou para aqueles que O amam" (1 Cor 2, 9). Essa é a maravilha
que nos aguarda no momento de ingressarmos na vida eterna. E esse deve ter sido
um considerável motivo para São Paulo perseverar até a hora de seu martírio,
apesar de ter ele visto então apenas reflexos do Absoluto que hoje contempla
face a face.
Consideremos em profundidade - até onde
pode alcançar nossa inteligência fortalecida pela fé - qual será a essência de
nossa felicidade quando ingressarmos na visão beatífica.
Visão beatífica e conhecimento de Deus
através das criaturas
Segundo São Tomás de Aquino, todos os
seres criados por Deus poderiam ter sido superiores, com exceção de três: a
humanidade de Cristo, por estar unida hipostaticamente à pessoa do Filho; a
Virgem Santíssima, por ser Mãe de Deus; e a visão beatífica, por se tratar de
visão do próprio Deus 1.
São Paulo afirma ser imperfeito nosso
conhecimento nas atuais circunstâncias, mas "quando vier o que é perfeito,
o que é imperfeito será abolido" (1 Cor 13, 10). E torna ainda mais clara
essa idéia utilizando- se desta comparação: "Quando eu era criança, falava
como criança, sentia como criança, discorria como criança. Mas, quando me
tornei homem, dei de mão às coisas que eram de criança. Nós agora vemos como
que por um espelho, obscuramente, mas então veremos face a face" (1 Cor
13, 11-12).
"Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade se tornam visíveis à inteligência, por suas obras" (Rm 1,20) Nascer do sol no Rio de Janeiro |
Tão rico foi o universo teológico
recebido por São Paulo diretamente do próprio Cristo Jesus que, às vezes, teses
de preciosa substância ficam involucradas em meio de outros temas, ao longo de
suas epístolas. Esta, em concreto, é uma delas. De fato, nosso conhecimento é
imperfeito, pois, quer seja no campo natural da pura inteligência, ou no
sobrenatural, mediante a virtude da fé, e inclusive no da profecia, tem uma
nota comum: a elaboração subseqüente realizada com base nos conceitos criados e
com o esforço da abstração.
Pelo contrário, ao vermos Deus face a
face, a fé redundará em visão e, portanto, se evanescerá com todo o
conhecimento abstrativo.
"Agora vemos como que por um
espelho..." ou seja, por meio de um instrumento; conhecemos a Deus só
"porque as coisas invisíveis dEle, depois da criação do mundo,
compreendendo- se pelas coisas feitas, tornaram- se visíveis" (Rm 1, 20).
E é a partir desse contato direto com as criaturas que elaboramos outros
motivos e princípios através da própria fé, utilizando conceitos criados. Por
isso é obscuro nosso conhecimento e, portanto, imperfeito. Porém, quando chegar
o fim, teremos um conhecimento imediato, claro e total de Deus, se bem que não
possamos conhecê- Lo totalmente.
A felicidade do ser inteligente:
o exercício de suas faculdades
Talvez entendamos ainda melhor essa
questão se seguirmos o pensamento de São Tomás de Aquino 2. Segundo o Doutor
Angélico, o desejo de felicidade do ser inteligente leva-o a buscar sua própria
perfeição, exercitando suas mais elevadas faculdades. Isto se verifica até
quanto aos próprios sentidos, e por isso podemos constatar que o olho se
regozija ao ver, e o paladar, ao saborear. E em conseqüência constitui um
tormento a inatividade forçada dos mesmos.
Ora, a felicidade do ser inteligente
também se verifica no exercício de suas faculdades e tornar-se-á ele tanto mais
feliz quanto mais nobres sejam essas faculdades e mais formoso e elevado o
objeto sobre o qual se exerçam. Não há dúvida de que, naturalmente falando,
nada há de mais excelente no homem do que sua inteligência e nada pode superar
a suprema verdade que é o próprio Deus. É, portanto, na inesgotável e sempre
renovada visão beatífica que o homem encontra a plenitude da felicidade,
extensiva a todas as suas apetências legítimas, como, por exemplo, o desejo de
governar: "e reinarão com Ele ..." (Ap 20, 6); ou a necessidade dos
bens: "Todos os bens me vieram juntamente com ela, e inumeráveis obras
pelas suas mãos" (Sb 7, 11). "O que é presentemente para nós uma
tribulação momentânea e ligeira, prepara-nos um peso eterno de glória para além
de toda a medida" (2 Cor 4, 17).
Amor: a procura incessante de Deus
O mesmo se pode dizer quanto à vontade,
pois no Céu claramente veremos a Deus face a face como o compêndio de todo bem,
tal qual nos ensina São Tomás: "A razão comum da bem-aventurança é o bem
comum perfeito. Assim o significou [Boécio] quando disse que é ‘o estado
perfeito da reunião de todos os bens', não significando outra coisa por isso,
senão que o bem-aventurado está no estado do bem perfeito" 3. E em seguida
torna ainda mais claro o conceito: "A bem-aventurança perfeita [...]
possui a reunião de todos os bens, devido à união com a fonte universal de todo
bem. Assim, não necessita de cada um dos bens particulares" 4.
Daí compreendermos o porquê de certos
santos terem experimentado uma tal carga mística de amor que quase chegaram ao
desfalecimento. Quiçá possamos ter melhor idéia de quão imensa e plena será a
felicidade de nossa vontade no Céu, ao analisarmos a razão do movimento de
nosso amor às criaturas, aqui na Terra. Sem nos darmos conta, portanto, quase
sempre de maneira implícita, ao amarmos, estamos buscando um reflexo de Deus
existente nestes ou naqueles objetos de nosso amor 5. Tendo isto diante dos
olhos, podemos nos perguntar: qual não será nossa felicidade no Céu, ao
depararmos com o próprio Deus, face a face?
Gozo: a posse do bem desejado
Dessa visão de Deus face a face e desse
amor recíproco entre mim e Ele, redundará um eterno e indescritível gozo, pois
quando tomo posse de um objeto sempre muito desejado por mim, torno-me feliz. Enquanto
ele não me pertence, eu me consumo por obtê-lo. Ao recebê-lo por minha
propriedade definitivamente, nele repouso e dele desfruto. Nisso consiste a
felicidade. Quanto melhor for o objeto e maior sua duração, proporcionalmente
mais intenso será o meu gozo daí resultante.
O ser humano, na essência de seu
espírito, especificamente é inteligência e amor. No Céu, o desejo de conhecer
se satisfaz de forma plena na visão da Verdade, Bondade e Beleza, ou seja, do
próprio Deus. E a ânsia de amar e ser amado se aplaca inteiramente, pois não só
amaremos a Deus, mas seremos cientes e experientes de todo o amor que Ele nos
tem. E, ademais, eternamente vendo aspectos novos do Ser Absoluto e Infinito,
acrescidos pelo insuperável convívio de Jesus em Sua santíssima humanidade, da
Virgem Maria, nossa Mãe, dos anjos e dos santos.
O que é o Céu?
Esse é o Céu, "o fim último e a
realização de todas as aspirações mais profundas do homem, o estado de
felicidade suprema e definitiva" 6; e essa é a glória que transparece no
Tabor, ao transfigurar-Se o Senhor. Manifestou aos três Apóstolos a clareza de
Sua alma e de Seu corpo para animá-los, em função da glória final, a
percorrerem o espinhoso e dramático caminho do Calvário e, com fortaleza de
alma, aceitarem o futuro martírio no epílogo de suas vidas.
Com esse fundo de quadro, analisemos o
Evangelho deste Segundo Domingo da Quaresma.
II - A TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR
Naquele tempo, 1 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um
lugar à parte, sobre uma alta montanha.
São Lucas fala em oito dias. Será mais
fácil compreender quão aparente é essa discrepância se levarmos em conta que um
evangelista considera o dia de saída e o de chegada, enquanto Mateus só se
refere aos intermediários, como nos explica São Jerônimo7. O "depois"
toma como referência a cena da confissão e primado de Pedro, na Cesaréia. Dali
partem rumo ao Monte Tabor que dista aproximadamente 80 km, situado nos confins
da Galiléia e da Samaria. O Divino Mestre se comprazia com o alto das
montanhas, e ali procurava prodigalizar Seus grandes mistérios.
Nesse caso concreto, escolheu o Tabor
talvez para simbolizar a necessidade de elevarmos nossos corações sobre as
coisas deste mundo e, em conseqüência, mais facilmente nos entregarmos à
meditação das verdades eternas e delas tirarmos todo proveito, conforme as
palavras de São Remígio: "Com isto o Senhor nos ensina que é necessário,
para quem deseja contemplar a Deus, não se deixar atolar nos baixos prazeres,
mas elevar a alma para as coisas celestiais, por meio do amor às realidades
superiores. Ensina ainda a Seus discípulos que não devem procurar a glória de
sua beatitude divina nas regiões inferiores do mundo, mas sim no reino da
beatitude celestial. E são levados separadamente porque todos os santos estão
apartados, com toda a sua alma e pela direção da fé, de qualquer mancha, e
serão radicalmente separados nos tempos vindouros; ou também porque muitos são
os chamados e poucos os escolhidos" 8.
Os comentários se multiplicam a
propósito da razão de ter Jesus escolhido esses três Apóstolos para gozarem do
convívio glorioso do Senhor. Um motivo claro e imediato salta logo aos olhos:
estes veriam mais de perto as humilhações pelas quais passaria o Salvador. Como
também era fundamental haver algumas testemunhas da glória de Jesus para
sustentarem, na prova da Paixão, os Apóstolos em suas tentações.
Apartar-se das criaturas é condição
indispensável para entrar em contato com Deus e, mais ainda, para vê-Lo
A refulgência esplendorosa da alma de
Jesus
2 E foi transfigurado diante deles; o seu rosto
brilhou como o Sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz.
Ali estava o próprio Moisés,
que outrora
é a ele que deves ouvir" (Dt 18,15)dissera ao povo eleito: "O Senhor teu Deus te suscitará dentre os teus irmãos um profeta como eu: |
No que terá consistido essa
transfiguração? Evidentemente, não viram os Apóstolos a divindade do Verbo de
Deus, inacessível aos olhos corporais. Viam apenas uma fímbria dos fulgores da
verdadeira glória da humanidade sagrada de Jesus. Provavelmente, nada mais do
que o dom da claridade da qual gozam os corpos gloriosos.
Tenhamos presente o quanto o Salvador
tinha preferência pela noite para rezar e por isso esse marcante acontecimento
deve ter-se dado após o entardecer, em meio aos silêncios da natureza, pois
também assim Ele Se manifesta a nós quando fazemos calar, em nosso interior, o
bulício das criaturas e buscamos as luzes do alto depois de termos apagado as
de aqui debaixo.
"O seu rosto resplandecia como um
Sol" (Ap 1, 16), ou seja, raios de luz partiam de Sua Sagrada Face e se
espalhavam a boa distância. Sem deixar de ser a mesma fisionomia, nada mais
possuindo de conotações terrenas, tornou-se radiante de brilho e esplendor, com
plena vitalidade e doçura. Bem podemos imaginar Sua grandeza ao vir julgar os
vivos e os mortos no fim dos tempos, uma vez que Seu rosto será ainda
muitíssimo mais brilhante nessa ocasião.
Se a fé dos Apóstolos necessitasse de uma confirmação testemunhal, ali estavam dois máximos representantes da Lei e dos profetas adorando a Cristo Jesus |
Por mais requintada que seja a arte
humana, difícil lhe é superar certas belezas da natureza saídas das mãos de
Deus. Acima dessas, estão as maravilhas da graça, as quais ultrapassam todos os
limites. Assim deveriam ser as vestes de Jesus durante Sua Transfiguração, bem
diferente, aliás, das usadas por nós nessas vias que terminam na morte. Essa
refulgência das roupas de Jesus era pálida exteriorização da glória de Sua
adorável alma, bem-aventurada pela graça de união e por encontrar-se na visão
beatífica desde o primeiro instante de Sua criação.
Quanta ilusão causam às vezes, nossos
alfaiates, costureiras e modistas, quando com certo sucesso, por suas
habilidades, conseguem encobrir defeitos de um corpo concebido no pecado e por
ele tisnado. Nestes casos, a roupa acaba por retificar as linhas tortas da
natureza. Durante a Transfiguração tudo foi diferente; a pulcritude da alma de
Jesus revestiu sua natureza humana perfeitíssima. Foi a glória interior que se
explicitou ante o olhar de quem teve a felicidade de estar no Tabor naquele momento.
O poder sobre a morte e a vida
3 Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando
com Jesus.
Se a fé dos Apóstolos necessitasse de
uma confirmação testemunhal, ali estavam dois máximos representantes - um da
Lei e outro dos Profetas - adorando a Cristo Jesus. Intimamente ligados ao
Messias, cumpriam de maneira soberana as exigências jurídicas para a
autenticidade de um testemunho absoluto. Termina a Lei, cumprem-se as
profecias. Toda a criação se prostre aos pés do Prometido das nações.
Esses dois grandes personagens aparecem
na Transfiguração do Senhor, segundo nos assegura São João Crisóstomo,
"para que se soubesse que Ele tinha poder sobre a morte e sobre a vida;
por esta razão apresenta Moisés, que tinha morrido, e Elias, que ainda vivia"
9.
Papel das consolações na
vida
4 Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom
ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para Ti, outra para
Moisés, e outra para Elias”.
Pedro será confirmado em graça somente
em Pentecostes; até lá, sua loquacidade lhe confere o mérito da manifestação de
fé na divindade de Jesus (cf. Mt 16, 16; Mc 8, 29; Lc 9, 20), ou o demérito da
promessa temerária de jamais romper sua fidelidade (cf. Mt 26, 33-35; Mc 14,
29; Lc 22, 33; Jo 13, 37), ou da negação na casa do Sumo Sacerdote (cf. Mt 26,
69-74; Mc 14, 66-72; Lc 22, 55-60; Jo 18, 25-27). No Tabor, penetrado de
desmedida alegria, deseja perpetuar aquela felicidade. Pedro não estava ainda
suficientemente instruído pelo Espírito Santo para saber o quanto a Terra não era
o ambiente para o gozo permanente. Não tinha noção de quanto as consolações são
auxílios passageiros concedidos por Deus para nos estimular em Seu serviço e a
sofrer por Ele.
"Eu e o Pai somos um"
5 Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem
luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu
Filho amado, no qual Eu pus todo meu agrado. Escutai-O!”
Nas Escrituras Sagradas, aparece
algumas vezes esta ou aquela nuvem para simbolizar a presença de Deus e Sua
teofania. Várias são as passagens do Êxodo em que elas são utilizadas como
sinais sensíveis da manifestação divina: "a glória do Senhor apareceu no
meio da nuvem" (Ex 16, 10); "e logo que Moisés entrava no tabernáculo
da aliança, a coluna de nuvem descia [...] vendo todos que a coluna de nuvem se
conservava parada à porta do tabernáculo" (Ex 33, 9-10); etc.
Não resta a menor dúvida de ser do Pai
a voz que proclama: "Este é o meu Filho".E de fato, analisando em
profundidade, somente Cristo Jesus preenche todos os requisitos de Filho
perfeito. Possui a mesma substância do Pai de maneira tão plenamente cabal que
constitui uma só e mesma coisa com Este: "O Pai e eu somos a mesma
coisa" (Jo 10, 30).É, portanto, igual ao Pai: "Filipe, quem me vê, vê
também a meu Pai" (Jo 14, 9).
Em Suas duas naturezas, Ele é a Palavra
que manifesta o Pai: é "o resplendor de sua glória e a figura de sua
substância" (Hb 1, 3), enquanto Deus. Por outro lado, também o fez através
de Sua humanidade: "Manifestei o Teu nome aos homens que Me deste do meio
do Mundo" (Jo 17, 6); "glorifiquei-Te sobre a Terra; acabei a obra
que Me deste a fazer" (Jo 17, 4). Além disso, foi de uma insuperável
obediência: "Não se faça a Minha vontade, mas a Tua" (Lc 22, 42);
"o meu alimento é fazer a vontade dAquele que Me enviou" (Jo 4, 34);
"fez-Se obediente até a morte, e morte de cruz!" (Fl 2, 8). Sempre em
inteira submissão, imitando-O em tudo: "O Filho não pode por Si mesmo
fazer coisa alguma, mas somente o que vê fazer o Pai" (Jo 5, 19).
Se bem que sejamos verdadeiros filhos
de Deus, como nos assegura o Salmista - "Eu disse: ‘Sois deuses, e todos
filhos do Altíssimo'" (Sl 81, 6) -, nós o somos por misericordiosa adoção.
O Filho de Deus por natureza é um só: "O Filho de Deus veio e nos deu
entendimento e luz para conhecer ao verdadeiro Deus" (1 Jo 5, 20).
“Este é o meu Filho amado,
no qual Eu pus todo meu agrado”
Quando amamos algo, buscamos uma
bondade que preexiste nesse algo, enquanto reflexo do próprio Deus. Nosso amor
não é eficiente a ponto de produzir a bondade nos objetos por nós amados. Pelo
contrário, o amor de Deus, segundo São Tomás de Aquino, é tão rico que introduz
a bondade nos seres por Ele amados. Ele é a Bondade por essência e a difundiu
por todas as Suas criaturas. Porém, aqui afirma o Pai ter colocado
"toda" a Sua complacência em seu Unigênito, tal qual no-lo declara
São João: "O Pai ama o Filho, e pôs todas as coisas na sua mão" (Jo
3, 35). Portanto, ao colocar nEle todo o Seu amor, pôs nEle, toda a Sua
bondade.
“Escutai-O!”
Ali estava o próprio Moisés, que
outrora dissera ao povo eleito: "O Senhor teu Deus te suscitará um
Profeta, como eu, de tua nação, e dentre teus irmãos; ouvi-lo-ás" (Dt
18,15). A ele, mais tarde, se associaria a voz de um outro mestre: Elias.
Os mestres do Antigo Testamento eram
autênticos enquanto procuravam anunciar o Messias vindouro ou Sua doutrina. O
mesmo se deve afirmar a respeito de todos os que vieram depois de Cristo: serão
eles verdadeiros mestres na medida em que aprenderem e transmitirem a doutrina
do Divino Mestre, tal qual Ele mesmo afirmou: "Um só é o vosso
Mestre" (Mt 23, 8). Ele não ensina como um professor comum que busca
ilustrar seus alunos por meio de puros raciocínios, Ele se baseia em Seu
conhecimento, por ser a Sabedoria infinita, e em Sua autoridade de Filho de
Deus, e por isso exige nossa fé. Sua vida nos proporcionou, a cada passo,
motivos suficientes para nEle crermos. É um dever de nossa parte crer em Sua
Palavra, imitar Seus exemplos, praticar sua lei, etc.; nisto consiste a
obediência à ordem do Pai: "... ouvi-O".
A fragilidade humana diante da glória de
Deus
6 Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito
assustados e caíram com o rosto em terra.
A voz do Senhor toca a fundo o coração
dos inocentes, tal qual se deu com Pedro na barca, ou com Tomé no Cenáculo:
caem com a face por terra. Sobre os maus, seu efeito é bem o contrário: caem de
costas, como sucedeu com os soldados que foram prender Jesus no Horto das
Oliveiras.
São Jerônimo procura nos explicar as
razões desta queda dos Apóstolos: "Por três motivos caíram aterrorizados:
porque compreenderam seu erro, porque ficaram envolvidos pela nuvem luminosa e
porque ouviram a voz de Deus que lhes falava. E não podendo a fragilidade
humana suportar tamanha glória, ela se estremece com todo o seu corpo e toda a
sua alma, e cai por terra: pois o homem que não conhece sua medida, quanto mais
queira elevar-se até as coisas sublimes, mais desliza até as baixas"10.
7 Jesus Se aproximou, tocou neles e disse:
“Levantai-vos, e não tenhais medo”.
Além da onipotência de Sua presença e
de Sua voz, Jesus quis tocá-los com Sua própria mão. Esse fato nos faz recordar
aquela passagem de Daniel: "uma mão me tocou e fez-me levantar" (Dn
10, 10). Tornou-se, assim, evidente para eles o quanto essa força partia de
Jesus e não da natureza deles.
8 Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais
ninguém, a não ser somente Jesus.
Desaparecem de seus olhos a Lei e os
Profetas. Agora entendem experimentalmente o quanto Jesus é o Esperado das
nações.
Após a contemplação é necessário
dedicar-se à ação
9 Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes:
“Não conteis a ninguém esta visão, até que o Filho do Homem tenha ressuscitado
dos mortos”.
Até mesmo no alto do Tabor, terminam as
alegrias, como sempre ocorre nesta terra de exílio. É necessário descerem do
monte todos aqueles que, ademais, são chamados à vida ativa. Depois de se
enriquecerem com as graças de Deus por meio da contemplação, é preciso abraçar
as penosas tarefas da pregação e da caridade. E não deviam dizer nada a
ninguém, "porque se fosse divulgada ao povo a majestade do Senhor, este
mesmo povo se oporia aos príncipes dos sacerdotes e impediria a Paixão, e assim
se retardaria a Redenção do gênero humano" 11.
III - CONCLUSÃO
"Sou demasiadamente grande, e meu
destino por demais nobre, para que eu me torne escravo de meus sentidos"
12. Esta foi a conclusão à qual chegou Sêneca por mera elaboração filosófica,
sem ter a menor revelação de algo análogo à Transfiguração do Senhor. No Tabor,
Jesus Cristo vai muitíssimo além: em Sua divina didática, faz-nos conhecer uma
parcela de Sua glória nos reflexos da claridade própria a Seu corpo após a
Ressurreição. Pálida exemplificação do que veremos no Céu, como fruto dos
méritos de Sua Paixão, dos fulgores de Sua visão beatífica e da união
hipostática. Como objetivo imediato, quis Ele fortalecer seus discípulos para
assumirem com heroísmo as tristes provações de Sua Paixão e Morte, à margem da
manifestação de Sua divindade. Porém, não era alheio aos Seus divinos
desígnios, deixar consignado para a História quais são as verdadeiras e reais
alegrias reservadas aos justos post mortem.
Em contrapartida, o demônio, o mundo e
o pecado nos prometem contentamentos com ares de absoluto. Entretanto, sua fruição
é quase sempre fugaz e seguida de amargas frustrações; além do mais, ao término
desta vida seremos lançados no fogo eterno como castigo, se não tiver havido de
nossa parte um verdadeiro arrependimento, propósito de emenda e a obtenção do
perdão de Deus.
No Tabor a voz do Pai proclama:
"ouvi-O". Esta recomendação se dirige sobretudo a nós, batizados,
pois somos filhos adotivos de Deus e, portanto, já passamos por uma imensa
transformação quando ascendemos à ordem sobrenatural, deixando de ser exclusivamente
puras criaturas.Porém, quando penetrarmos na ordem da glória, outra
transformação se dará, pois seremos como Ele o é agora. Para lá chegarmos,
convidanos Jesus a iniciarmos pelas agruras dos primeiros passos no caminho da
virtude, sustentados logo depois por muita paz de alma e, por fim, sermos nós
mesmos transfigurados no alto do Tabor eterno.
O Céu, por si só, é uma enorme
manifestação da bondade de Deus, um riquíssimo tesouro de felicidade que Ele
nos promete e um poderoso estímulo para aceitarmos com amor as cruzes durante
nossa existência terrena. Confiemos nessa promessa com base nas garantias da
Transfiguração do Senhor e peçamos à Mãe da Divina Graça que bondosamente nos
auxilie com os meios sobrenaturais a chegarmos incólumes, decididos e seguros
ao bom porto da eternidade: o Céu.
1)
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I, q. 25, a. 6, ad. 4.
2)
Idem, Suma contra os Gentios, l. 1, c. 100.
3)
Idem, Suma Teológica, I-II, q. 3, a.2, ad. 2.
4)
Idem, ibidem, I-II, q. 3, a. 3, ad. 2.
5)
Idem, ibidem, I q. 44, a. 4 ad. 3.
6)
CIC, § 1024.
7)
AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
8)
Idem, ibidem.
9)
Idem, ibidem
10)
Idem, ibidem
11)
SÃO REMÍGIO apud AQUINO, São Tomás de. Catena Aurea.
12)
Sêneca: Ep. 65.
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