Jesus abre os olhos do cego de nascença, por Duccio di Buoninsegna National Gallery of Art, Londres |
Naquele tempo, 1 ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 2 Os discípulos perguntaram a Jesus: ‘Mestre, quem pecou para que
nascesse cego: ele ou os seus pais?’. 3 Jesus respondeu: ‘Nem ele nem seus pais pecaram, mas isso serve para
que as obras de Deus se manifestem nele. 4 É necessário que nós realizemos as obras d’Aquele que Me enviou,
enquanto é dia. Vem a noite, em que ninguém pode trabalhar. 5 Enquanto estou no mundo, Eu sou a luz do mundo’. 6 Dito isto, Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a
sobre os olhos do cego. 7 E disse-lhe: ‘Vai lavar-te na piscina de Siloé’
(que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e voltou enxergando.
8 Os vizinhos e os que costumavam ver o cego — pois ele era mendigo —
diziam: ‘Não é aquele que ficava pedindo esmola?’. 9 Uns diziam: ‘Sim, é ele!’ Outros afirmavam: ‘Não é ele, mas alguém
parecido com ele’. Ele, porém, dizia: ‘Sou eu mesmo!’. 10 Então lhe perguntaram: ‘Como é que se abriram os teus olhos?’. 11 Ele respondeu: ‘Aquele homem chamado Jesus fez lama, colocou-a nos
meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé e lava-te’. Então fui, lavei-me e comecei a
ver’. 12 Perguntaram-lhe: ‘Onde está ele?’. Respondeu: ‘Não
sei’. 13 Levaram então aos fariseus o homem que tinha sido
cego. 14 Ora, era sábado, o dia em que Jesus tinha feito
lama e aberto os olhos do cego. 15 Novamente, então, lhe perguntaram os fariseus como tinha recuperado a
vista. Respondeu-lhes: ‘Colocou lama sobre meus olhos, fui lavar-me e agora
vejo!’. 16 Disseram, então, alguns dos fariseus: ‘Esse homem
não vem de Deus, pois não guarda o sábado’. Mas outros diziam: ‘Como pode um
pecador fazer tais sinais?’. 17 E havia divergência entre eles. Perguntaram outra vez ao cego: ‘E tu,
que dizes daquele que te abriu os olhos?’. Respondeu: ‘É um profeta’. 18 Então, os judeus não acreditaram que ele tinha sido cego e que tinha
recuperado a vista.
Chamaram os pais dele 19 e perguntaram-lhes: ‘Este é o vosso filho, que dizeis ter nascido
cego? Como é que ele agora está enxergando?’. 20 Os seus pais disseram: ‘Sabemos que este é nosso filho e que nasceu
cego. 21 Como agora está enxergando, isso não sabemos. E
quem lhe abriu os olhos também não sabemos. Interrogai-o, ele é maior de idade,
ele pode falar por si mesmo’. 22 Os seus pais disseram isso, porque tinham medo das autoridades
judaicas. De fato, os judeus já tinham combinado expulsar da comunidade quem
declarasse que Jesus era o Messias. 23 Foi por isso que seus pais disseram: ‘É maior de idade. Interrogai-o a
ele’. 24 Então, os judeus chamaram de novo o homem que
tinha sido cego. Disseram-lhe: ‘Dá glória a Deus! Nós sabemos que esse homem é
um pecador’. 25 Então ele respondeu: ‘Se ele é pecador, não sei.
Só sei que eu era cego e agora vejo’. 26 Perguntaram-lhe então: ‘Que é que Ele te fez? Como te abriu os
olhos?’. 27 Respondeu ele: ‘Eu já vos disse, e não escutastes.
Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis tornar-vos discípulos d’Ele?’.
28 Então insultaram-no, dizendo: ‘Tu, sim, és
discípulo d’Ele! Nós somos discípulos de Moisés. 29 Nós sabemos que Deus falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é’.
30 Respondeu-lhes o homem: ‘Espantoso! Vós não sabeis
de onde Ele é? No entanto, Ele abriu-me os olhos! 31 Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas escuta aquele que é
piedoso e que faz a sua vontade. 32 Jamais se ouviu dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de
nascença. 33 Se este homem não viesse de Deus, não poderia
fazer nada’. 34 Os fariseus disseram-lhe: ‘Tu nasceste todo em
pecado e estás nos ensinando?’. E expulsaram-no da comunidade.
35 Jesus soube que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe:
‘Acreditas no Filho do Homem?’. 36 Respondeu ele: ‘Quem é, Senhor, para que eu creia nele?’. 37 Jesus disse: ‘Tu o estás vendo; é Aquele que está falando contigo’.
Exclamou ele: 38 ‘Eu creio, Senhor!’. E prostrou-se diante de
Jesus. 39 Então, Jesus disse: ‘Eu vim a este mundo para
exercer um julgamento, a fim de que os que não veem, vejam, e os que veem se
tornem cegos’. 40 Alguns fariseus, que estavam com ele, ouviram isto
e lhe disseram: ‘Porventura, também nós somos cegos?’. 41 Respondeu-lhes Jesus: ‘Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas como
dizeis: ‘Nós vemos’, o vosso pecado permanece’” (Jo 9, 1-41).
Mons. João Clá Dias, EP |
IV DOMINGO DA QUARESMA
(DOMINGO LAETARE)
A pior cegueira . . .
Ao operar o milagre
da cura de um cego de nascença, Nosso Senhor Jesus Cristo mostra que há
cegueira pior a dos olhos corporais: a da alma, que impede o desenvolvimento da
luz sobrenatural infundida em nossas almas pelo Batismo.
I - O DOMINGO "LAETARE" TRAZ-NOS UMA
JUBILOSA ESPERANÇA
A visão é o principal dos sentidos
corpóreos, por ser o que nos proporciona melhor o conhecimento do Criador,
através da contemplação do verdadeiro, do bom e do belo existente nas
criaturas.
Esse magnífico dom é símbolo de outro
mais precioso, relativo à vida da graça. Não vemos a Deus fisicamente, mas Ele
está presente em toda parte. Embora possamos, pela lógica, demonstrar sua
existência, não nos é possível vê-Lo com os olhos carnais, mas sim aderirmos a
Ele com o auxílio da luz da graça que ilumina a inteligência, inclina a vontade
ao bem e ordena nossa sensibilidade. Sem o dom de Deus que é a virtude da fé,
nada conseguimos ver nem aceitar no campo sobrenatural. Entretanto, como afirma
Royo Marín, "ao revelar-nos sua vida íntima e os grandes mistérios da
graça e da glória, Deus nos faz ver as coisas, por assim dizer, do seu ponto de
vista divino, tal como Ele as vê".1
Em sentido figurado, poderíamos dizer que nascemos com os olhos vendados e o Batismo nos arranca essa venda Fonte Batismal - Igreja de Santa Maria, Kitchener (Canadá) |
Em sentido figurado, poderíamos dizer
que nascemos com os olhos vendados e o Batismo nos arranca a venda. Mesmo
assim, na Terra vemos a Deus em sombras, ou seja, não podemos vê-Lo como Ele é.
Explica-nos isso com clareza Mons. Cuttaz: "Encontra-Se Ele diante de nós
com toda a sua infinita beleza, pois está em toda parte, especialmente na alma
do justo. Um pouco, nós O conhecemos por sua ação, mas não O vemos: falta-nos
uma luz, um instrumento de visão sobrenatural. É a graça que nos proporcionará
isso no Céu, dentro desse ‘lumen gloriæ' (luz da glória), da qual será o
princípio".2
Nesta vida terrena, temos na alma
apenas uma semente de visão beatífica. Mas, ao passarmos para a eternidade, ela
se desenvolverá como uma árvore, e desaparecerão por completo os véus que
cobrem a fé e a esperança, e veremos Deus face a face.
II – UM HOMEM QUE VIVIA
NAS TREVAS FÍSICAS E ESPIRITUAIS
Ao escrever seu Evangelho, no momento
em que a Igreja se encontra em plena controvérsia com os gnósticos, São João
empenha-se desde o início em provar que Jesus é ao mesmo tempo Homem, embora
sem personalidade humana, e Deus, unindo hipostaticamente a natureza divina e a
humana na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.
Analisando a finalidade do Evangelho de
São João, comenta o padre Tuya: "Quis-se notar nele uma certa tendência
polêmica contra o fato de querer separar o homem de Deus".3 E acrescenta
mais adiante: "Num aspecto, a imagem de Cristo aparece delineada com
traços sublimes: é Deus. [...] Mas mostra que Ele é também Homem. [...] Na
imagem do Deus-Homem, João não se limita a especular; relata a história e
revela os atos divinos e humanos".4
O trecho do Evangelho deste domingo
apresenta Nosso Senhor pouco depois de sair do Templo, onde acabara de ter uma
das mais ardentes polêmicas com os fariseus, encerrada por Ele com uma solene
declaração de sua divindade, ao afirmar com fórmula de juramento: "Em verdade
vos digo, antes que Abraão fosse, Eu sou" (Jo 8, 58). Os fariseus, então,
"pegaram em pedras para Lhe atirarem" (Jo 8, 59). Tinham a intenção
de matá-Lo, mas não conseguiram, pois Ele se esquivou e saiu do Templo,
"porque ainda não era chegada sua hora" (Jo 8, 20).
Logo após essa dramática cena, Jesus
fez diante de todo o povo o estrondoso milagre que servirá para confirmar a
veracidade de suas palavras a respeito de sua sobrenatural origem.
Cristo dispôs tudo para sua glória
Naquele
tempo, 1 ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. 2 Os discípulos
perguntaram a Jesus: “Mestre, quem pecou para que nascesse cego: ele ou os seus
pais?” 3 Jesus respondeu: “Nem ele nem seus pais pecaram,
mas isso serve para que as obras de Deus se manifestem nele. 4 É necessário que nós
realizemos as obras d’Aquele que Me enviou, enquanto é dia. Vem a noite, em que
ninguém pode trabalhar. 5 Enquanto estou no mundo, Eu sou a Luz do mundo”.
A crença de que os males físicos eram
sempre consequência de algum pecado estava muito arraigada não só nos judeus,
mas também nos povos pagãos contemporâneos de Cristo. "Em diversas
ocasiões", escreve Fillion, "o próprio Jesus parecia ter considerado
como castigo do pecado algumas das enfermidades por Ele curadas". 5 E São João
Crisóstomo observa que certa feita, depois de haver curado um paralítico, Ele o
advertiu: "Não peques mais, para não te suceder algo pior" (Jo 5,
14), dando a entender assim que o pecado havia sido causa daquela doença.6
No presente caso, porém, declara
taxativamente o Mestre que essa cegueira foi permitida desde toda a eternidade,
para dar ensejo à manifestação de seu poder divino sobre a natureza. E, como
veremos pouco abaixo, esse milagre foi também a misericordiosa oportunidade
para o cego receber a graça da conversão; juntamente com a luz natural,
veio-lhe a fé n'Aquele que é a Luz do mundo.
A didática de um grandioso milagre
O cego, confiante na palavra de Jesus, não pensou em quantas vezes já se lavara na piscina de Siloé, sem ser curado Ruínas da piscina de Siloé - Jerusalém |
6 "Dito isto,
Jesus cuspiu no chão, fez lama com a saliva e colocou-a sobre os olhos do cego.
7 E disse-lhe: ‘Vai
lavar-te na piscina de Siloé' (que quer dizer: Enviado). O cego foi, lavou-se e
voltou enxergando".
Causa surpresa o fato de Jesus cuspir
no chão, fazer lama, passar nos olhos do doente e depois dar-lhe ordem de ir
lavar-se. Ora, Ele poderia ter operado esse milagre mediante um simples olhar
ou um ato de vontade, como mais tarde fará com outro cego - o de Jericó - a
quem Jesus disse: "Vê" (Lc 18, 42). No entanto, quis sarar o cego de
nascença aplicando-lhe barro sobre os olhos e mandando-o lavar-se na piscina de
Siloé. Bem observa, a este propósito, São João Crisóstomo: "Cuspiu no chão
para eles não atribuírem um poder milagroso à água dessa piscina e para
entenderem que saiu de sua boca a misteriosa energia que regenerou os olhos do
cego e os abriu. É por isso que o Evangelista diz: ‘Fez lama com a saliva'. Em
seguida, para evitar que se pensasse num poder secreto da terra, mandou-o ir
lavar-se".7
Primeiro quis o Divino Mestre que todos
os circunstantes vissem o cego com barro nos olhos, e isso, certamente, causou viva
impressão. Em seguida, ao retornar o homem curado, ficaria patente perante eles
Quem era o autor da cura. Para um povo duro de coração como aquele, era preciso
não haver dúvida a tal respeito. Daí ter Jesus utilizado a própria saliva,
misturando-a com a terra, duas matérias incapazes por si de operar a cura,
ressaltando provir d'Ele o poder sobrenatural. Pode-se observar que os detalhes
do episódio foram divinamente dispostos para produzir nos presentes o grande
efeito narrado pelo Evangelista.
Por sua vez, o cego acreditou na
palavra de Jesus. Não pensou, por exemplo, em quantas vezes já se lavara na
piscina de Siloé, sem se curar, nem se aquela lama poderia prejudicar ainda
mais sua saúde. Comenta São João Crisóstomo: "Note-se como o cego tinha a
disposição de obedecer em tudo. [...] Seu único objetivo foi o de obedecer a
Quem lhe ordenava. Nada pôde dissuadi-lo, nada constituiu obstáculo".8 Ele
fez exatamente o que Nosso Senhor mandara, e foi recompensado.
Má vontade diante do milagre patente
8 "Os vizinhos e
os que costumavam ver o cego - pois ele era mendigo - diziam: ‘Não é aquele que
ficava pedindo esmola?'. 9 Uns diziam: ‘Sim, é ele!'. Outros afirmavam: ‘Não
é ele, mas alguém parecido com ele'. Ele, porém, dizia: ‘Sou eu mesmo!'. 10 Então lhe perguntaram:
‘Como é que se abriram os teus olhos?'. 11 Ele respondeu: ‘Aquele homem chamado
Jesus fez lama, colocou-a nos meus olhos e disse-me: ‘Vai a Siloé e lava-te'.
Então fui, lavei-me e comecei a ver'. 12 Perguntaram-lhe: ‘Onde está ele?'.
Respondeu: ‘Não sei'".
Um fato tão extraordinário como este
foi motivo de grande sensação, comentários e discussões entre "os vizinhos
e os que costumavam ver o cego" pedindo esmolas. O sintético relato
evangélico não especifica se houve manifestações de entusiasmo, de
incredulidade ou de ódio. Contudo, parece certo que a primeira reação de alguns
foi, pelo menos, de "ignorar" a evidência da cura milagrosa. Indício
disso é o tom reservado das respostas do feliz beneficiário do milagre.
Má-fé e dureza de coração dos fariseus
13 "Levaram então
aos fariseus o homem que tinha sido cego. 14 Ora, era sábado, o dia em que Jesus
tinha feito lama e aberto os olhos do cego. 15 Novamente, então, lhe perguntaram os
fariseus como tinha recuperado a vista. Respondeu-lhes: ‘Colocou lama sobre
meus olhos, fui lavar-me e agora vejo!'. 16 Disseram, então, alguns dos fariseus:
‘Esse homem não vem de Deus, pois não guarda o sábado'. Mas outros diziam:
‘Como pode um pecador fazer tais sinais?'. 17 E havia divergência entre eles.
Perguntaram outra vez ao cego: ‘E tu, que dizes daquele que te abriu os
olhos?'. Respondeu: ‘É um profeta'. 18 Então, os judeus não acreditaram que
ele tinha sido cego e que tinha recuperado a vista".
A par do desentendimento instalado
entre os fariseus a propósito do acontecimento, esses versículos tornam
patentes dois aspectos do estado de espírito deles. A má-fé: pouco se
importando com o favor dispensado por Nosso Senhor ao infortunado cego,
proferem contra Ele a desgastada censura de violação do sábado. E a dureza de
coração: mesmo diante da evidência, negam-se a acreditar em Jesus e inquirem o
mendigo, não para apurar a verdade, mas na esperança de conseguir um testemunho
hostil ao Divino Mestre. "Interrogam-no acerca da visão obtida, não para
saber, mas para forjar uma calúnia e impor falsidade",9 comenta São Tomás.
O ex-cego, pelo contrário, faz diante deles um ato de fé em Jesus: "É um
profeta".
Como se esquivam os pais do cego
"Chamaram
os pais dele 19 e perguntaram-lhes: ‘Este é o vosso filho, que
dizeis ter nascido cego? Como é que ele agora está enxergando?'. 20 Os seus pais
disseram: ‘Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego. 21 Como agora está
enxergando, isso não sabemos. E quem lhe abriu os olhos também não sabemos.
Interrogai-o, ele é maior de idade, ele pode falar por si mesmo'. 22 Os seus pais disseram
isso, porque tinham medo das autoridades judaicas. De fato, os judeus já tinham
combinado expulsar da comunidade quem declarasse que Jesus era o Messias. 23 Foi por isso que
seus pais disseram: ‘É maior de idade. Interrogai-o a ele'".
Não tiveram dificuldade os pais do cego
em perceber a malícia e o ódio que imperavam nesse inquérito dos fariseus. E
tinham motivos de sobra para temê-los, pois a expulsão da sinagoga poderia ter
graves consequências no campo civil, como o desterro e o confisco dos bens. Por
isso preferiram cortar qualquer possibilidade de fazer algum pronunciamento a
respeito de Jesus: Não sabemos, perguntai ao nosso filho, ele é maior de idade.
Contraste entre o ódio dos fariseus
e a sabedoria do mendigo
24 "Então, os
judeus chamaram de novo o homem que tinha sido cego. Disseram-lhe: ‘Dá glória a
Deus! Nós sabemos que esse homem é um pecador'. 25 Então ele respondeu: ‘Se ele é
pecador, não sei. Só sei que eu era cego e agora vejo'. 26 Perguntaram-lhe
então: ‘Que é que ele te fez? Como te abriu os olhos?'. 27 Respondeu ele: ‘Eu
já vos disse, e não escutastes. Por que quereis ouvir de novo? Por acaso quereis
tornar-vos discípulos d'Ele?'. 28 Então insultaram-no, dizendo: ‘Tu, sim, és
discípulo d'Ele! Nós somos discípulos de Moisés. 29 Nós sabemos que Deus
falou a Moisés, mas esse, não sabemos de onde é'. 30 Respondeu-lhes o
homem: ‘Espantoso! Vós não sabeis de onde ele é? No entanto, ele abriu-me os
olhos! 31 Sabemos que Deus não escuta os pecadores, mas
escuta aquele que é piedoso e que faz a sua vontade. 32 Jamais se ouviu
dizer que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença. 33 Se este homem não
viesse de Deus, não poderia fazer nada'. 34 Os fariseus disseram-lhe: ‘Tu nasceste
todo em pecado e estás nos ensinando?'. E expulsaram-no da comunidade".
Grande era a contumácia dos dirigentes
da sinagoga. Nota-se nesses versículos, mais uma vez, sua malévola insistência
na tentativa de obter do miraculado uma declaração contra o Senhor. "Os
fariseus procuravam em sua resposta somente um motivo para desvirtuar os fatos
e negar que Cristo o havia curado", observa o padre Tuya.10 Mas, assistido
pelo Espírito Santo, o mendigo respondeu-lhes com acerto, tal como o próprio
Jesus teria feito em iguais circunstâncias. "Que contraste entre o ódio, a
astúcia e a violência dos fariseus, reprimida no início, mas logo depois
declarada, e, de outro lado, a calma, a habilidade e a fina ironia do mendigo
que, embora aparentemente vencido, conseguirá a vitória!",11 comenta bem a
propósito Fillion. Prevaleceu a sabedoria do homem simples fiel à graça sobre a
pretensiosa ciência dos fariseus, ficando patente que o milagre beneficiara
mais profundamente a visão da alma do que a visão do corpo.
Quanto aos fariseus, estes reagiram de
acordo com sua obstinação: após insultar grosseiramente o homem que uma
autoridade justa deveria tratar com toda a benevolência, decretaram contra ele
a sentença de excomunhão.
Uma razão a mais para Jesus o atrair a
Si com sua divina bondade. Comenta, a esse respeito, Santo Agostinho:
"Depois de muitas coisas, foi excluído da sinagoga dos judeus aquele que
era cego e agora enxergava. Enfureceram-se contra ele e o expulsaram. E era
isso que temiam seus pais, conforme foi declarado pelo Evangelista. [...]
Temiam, pois, eles serem enxotados da sinagoga; ele não temeu e foi enxotado;
os pais permaneceram nela. Mas ele é acolhido por Cristo e pode dizer: ‘Porque
meu pai e minha mãe me abandonaram'. Que acrescentou? ‘O Senhor, porém,
tomou-me sob a sua proteção'. Vem, ó Cristo, e recebe-o; eles o excomungaram,
acolhe-o tu. Tu, o Enviado, acolhe o excluído".12
O cerne deste episódio
35 "Jesus soube
que o tinham expulsado. Encontrando-o, perguntou-lhe: ‘Acreditas no Filho do
Homem?'. 36 Respondeu ele: ‘Quem é, Senhor, para que eu creia
nele?'. 37 Jesus disse: ‘Tu O estás vendo; é Aquele que está
falando contigo'. Exclamou ele: 38 ‘Eu creio, Senhor!'. E prostrou-se diante de
Jesus".
"Quem é, Senhor, o Filho do Homem, para que eu creia n'Eele?" Jesus disse: "Tu O estás vendo!" Sagrado Coração de Jesus Casa Monte Carmelo, Arautos do Evangelho |
O objetivo de São João, ao narrar esse
episódio, era, sem dúvida, tornar evidente o seguinte ponto: ao ser curado da
cegueira, aquele homem recebeu também a crença na divindade de Cristo.
A pergunta do Mestre é formulada com
suprema sagacidade. Em diversas ocasiões Ele Se denomina nos Evangelhos como o
Filho do Homem. Essa expressão O protegia da malícia dos fariseus, que
procuravam pretexto para condená-Lo, pois podia ser interpretada tanto como
"o homem que Eu sou", quanto como uma denominação do Messias.13 No
fundo, Ele dava testemunho da sua divindade por meio de um título do qual os
fariseus não poderiam tirar proveito para seus insidiosos ataques.
E quando respondeu ao mendigo com as
palavras: "Tu O estás vendo", fazia menção ao duplo benefício que lhe
concedera: a visão natural e o dom de crer na sua divindade. Por isso o
miraculado proclamou sua fé prosternando-se diante d'Ele, em atitude de
adoração, e provavelmente passou a acompanhar os discípulos.
É razoável considerar ter esse milagre
concorrido muito para confirmar na fé os próprios Apóstolos e, ademais, lhes
haver dado a possibilidade de ponderar o quanto vale mais a conversão
espiritual do que a cura da cegueira material.
A leitura do próximo versículo nos fará
entender melhor este aspecto da questão.
A verdadeira visão
39 "Então, Jesus
disse: ‘Eu vim a este mundo para exercer um julgamento, a fim de que os que não
veem, vejam, e os que veem se tornem cegos'".
Emprega aqui o Divino Mestre o verbo
"ver" em dois sentidos: o físico e o espiritual. Santo Agostinho
assim comenta essa passagem: "Embora todos, ao nascer, tenhamos contraído
o pecado original, nem por isso nascemos cegos; contudo, considerando bem,
nascemos cegos nós também. Com efeito, quem não nasceu cego? Cego de coração.
Mas o Senhor, que fizera ambas as coisas, os olhos e o coração, curou tanto uns
quanto o outro".14
40 "Alguns
fariseus, que estavam com Ele, ouviram isto e Lhe disseram: ‘Porventura, também
nós somos cegos?'. 41 Respondeu-lhes Jesus: ‘Se fôsseis cegos, não
teríeis culpa; mas como dizeis: ‘Nós vemos', o vosso pecado permanece'".
À interpelação de alguns fariseus,
Nosso Senhor responde com uma impressionante increpação. Com efeito, se, apesar
de todas as obras por Ele realizadas, alguém O considera apenas de modo natural
e humano, sem reconhecer sua divindade, esse é, de fato, um cego de alma, um
cego de coração. Pelo contrário, quem padece de cegueira corporal, mas, por
ação da graça, acredita na divindade do Messias, este foi curado da cegueira
espiritual, cura incomparavelmente mais importante que a da cegueira física.
Pois, como afirma o Apóstolo, "o que é visível é passageiro, mas o que é
invisível é eterno" (II Cor 4, 17).
Essa é a beleza da liturgia de hoje, ao
ressaltar a maravilha da visão sobrenatural.
III – DEIXEMOS AS TREVAS DESTE MUNDO
O cerne deste Evangelho nos é
sintetizado por São Paulo em sua Epístola aos Efésios, também proposta à nossa
consideração neste domingo da alegria: "Outrora éreis trevas, mas agora sois
luz no Senhor" (Ef 5, 8).
A graça do Batismo é incomparavelmente superior à luz solar Pôr do sol visto da Casa-Mãe dos Arautos do Evangelho São Paulo |
Tendo nascido com o pecado original, de
fato estaremos em trevas para compreender o sobrenatural enquanto não
recebermos a luz da graça pelo Batismo. Esta é incomparavelmente superior à
própria luz solar. "O que é o Sol para o mundo sensível, é-o Deus para o
mundo espiritual: a luz da justiça e da verdade eterna, da mais elevada
formosura e do amor infinito, da mais pura santidade e da mais perfeita
felicidade", 15 afirma o padre Scheeben.
Em nosso apostolado, esforcemo-nos, pois,
em ajudar os outros a recuperar a vista espiritual, porque, assim, poderão
contemplar os reflexos da luz divina na criação e ordenar sua vida em função
desse Luzeiro que é Cristo Jesus e a Santa Igreja Católica Apostólica Romana.
Apresentando-nos esse magnífico
Evangelho sobre a luz no 4º Domingo da Quaresma, a Igreja nos proporciona um
particular alento para avançarmos com ânimo resoluto na vida espiritual. Às
vezes fraquejamos, deixamo-nos arrastar por nossas más inclinações e sentimos
periclitar nossa perseverança nas vias da santificação. Nesses momentos,
lembremo-nos da cura do cego de nascença e consideremos que, se Deus permitiu
que caíssemos numa debilidade, Ele está atento para intervir a qualquer momento
e restaurar em nós a vida divina. Com as orações e a mediação maternal de
Maria, nos encontraremos purificados para contemplar a luz do Círio Pascal,
símbolo também dessa Luz que nos foi dada com a Ressurreição de Cristo e que
nos vem através dos Sacramentos.
1
ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para Seglares. 5.ed. Madrid: BAC, 1979,
v.I, p.232.
2
CUTTAZ, François Joseph. Nuestra vida de gracia (El Justo). Madrid: Studium,
1962, p.28-29.
3
TUYA, OP, Manuel de. Biblia comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.II,
p.941.
4 Idem, p.946.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp,
2000, v.II, p.358-359.
6
Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de San Juan (30-60).
Madrid: Ciudad Nueva, 2001, v.II, p.273.
7
Idem, p.282-283.
8
Idem, p.283-284.
9
SÃO TOMÁS DE AQUINO. Comentario al Evangelio según San Juan. Buenos Aires:
Ágape, 2008, t.V, p.22.
10 TUYA, op. cit., p.1163.
11 FILLION, op. cit., p.362.
12
SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Ps. 130, 4. In: Obras de San Agustín.
2.ed. Madrid: BAC, 1965, v.X, p.630-631.
13 Cf. LÉON-DUFOUR, SJ, Xavier (Org.). Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Vozes,
1972, p.365-366.
14
SANTO AGOSTINHO. Enarrationes in Ps. 136, 2. In: op. cit., p.642.
15 SCHEEBEN, Matthias-Joseph. As maravilhas da graça divina. Petrópolis: Vozes,
1952, p.147.
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