A Ascensão de Nosso Senhor Pró-Catedral de Santa Maria, Hamilton (Canadá) |
Ao assumir nossa carne, quis o Filho de Deus
viver entre nós para nos dar o exemplo da plenitude da perfeição a que deseja
nos elevar. A subida do Senhor aos Céus é também um ponto de imitação. Como
será, então, a nossa?
I – A HORA DA PARTIDA DE JESUS CRISTO
A
Igreja celebra na Quinta-feira da 6ª Semana do Tempo Pascal a Solenidade da
Ascensão do Senhor, transferida no Brasil para o 7º Domingo da Páscoa, por
razões pastorais. Houve épocas em que esta festividade era realizada com grande
brilho. Assim como se comemora à meia-noite do dia 24 de dezembro o nascimento
do Menino Jesus e às três horas da tarde da Sexta-Feira Santa a sua Morte, a
Ascensão o era ao meio-dia. Na Idade Média costumava-se realizar uma procissão
para representar o trajeto feito por Nosso Senhor, acompanhado pelos Apóstolos
e discípulos, de Jerusalém ao Monte das Oliveiras, de onde Ele ascendeu para
junto do Pai (cf. At 1, 12). Durante a Missa, o diácono apagava o Círio Pascal
logo após o cântico do Evangelho, simbolizando o último episódio da existência
visível do Redentor na terra.
Hoje,
ao contemplarmos sua subida aos Céus, tenhamos presente que Jesus não nos
abandonou, mas, pelo contrário, continua conosco, conforme a promessa feita no
Evangelho: “Eis que estarei convosco todos os dias, até o fim do mundo”. E nós,
enquanto filhos, também desejamos permanecer com Ele, uma vez que veio a este
mundo trazer-nos a participação na sua natureza divina.
II – QUANDO SERÁ
RESTAURADO O REINO?
Ao
longo de seus escritos, os Evangelistas procuram expor os acontecimentos
centrais da vida terrena de Nosso Senhor, na maior parte da qual Ele assumiu um
corpo padecente como o nosso. No entanto, com exceção de São Lucas, quase nada
dizem a respeito da Ascensão (cf. Mc 16, 19), evento de suma importância. Apenas
no terceiro Evangelho encontramos alguns versículos dedicados a este mistério
(cf. Lc 24, 50-51), além de um relato mais pormenorizado, no início dos Atos
dos Apóstolos, em que, dando sequência a seu primeiro livro, o mesmo autor
descreve a ação mística de Jesus após sua partida para os Céus, ou seja, o
desenvolvimento e expansão da Igreja em seu nascedouro.
Por
tal razão, e por ter sido o término do Evangelho de São Mateus objeto de outros
comentários,1 será ele analisado à luz da narrativa da Ascensão feita por São
Lucas – primeira leitura desta Solenidade (At 1, 1-11) –, já que o texto
evangélico não se refere propriamente ao fato histórico da despedida de Nosso
Senhor, mas sim a uma de suas aparições ocorrida durante os quarenta dias em
que, ressuscitado, conviveu com os Apóstolos e lhes transmitiu seus últimos
ensinamentos.
Errônea
concepção a respeito do Messias
Naquele tempo, 16 os
Onze discípulos foram para a Galileia, ao monte que Jesus lhes tinha indicado.
17 Quando viram Jesus, prostraram-se diante d’Ele. Ainda assim alguns
duvidaram.
Várias
destas manifestações de Nosso Senhor nesse período deram-se na Galileia. Ao
escolher uma região afastada de Jerusalém tornava-se patente que o verdadeiro
culto a Deus não se prendia mais ao Templo, mas à sua Pessoa Divina. O primeiro
versículo do Evangelho recorda também sua predileção pelos lugares elevados,
tantas vezes demonstrada durante sua vida pública. Alguns acreditam que este
episódio tenha ocorrido no Tabor, outros em um dos montes situados nas proximidades
do Lago de Genesaré.2 O certo é que o local foi determinado pelo próprio Jesus
por razões sapienciais, como comenta São Rábano Mauro: “O Senhor apareceu-lhes
num monte para dar a entender que o Corpo que havia tomado da terra ao nascer –
como sucede a todos os homens – já estava elevado acima de todas as coisas
terrenas quando ressuscitou, e ensinava aos fiéis que, se desejassem ver como
Ele a magnificência da ressurreição, deviam esforçar-se por passar das mais
baixas paixões às mais elevadas aspirações”.3
Ao
reconhecerem Jesus, os Onze prostraram-se diante d’Ele para adorá-Lo. Bem
podemos cogitar que nesses encontros durante sua permanência visível entre nós
antes de subir aos Céus, os Apóstolos sentiam no fundo da alma que algo
grandioso estava para acontecer. Entretanto, apesar de O haverem acompanhado em
sua pregação, de terem passado pelo terrível trauma de vê-Lo preso, flagelado,
coroado de espinhos, morto na Cruz e sepultado, tendo inclusive constatado o
milagre da Ressurreição e presenciado suas aparições já em corpo glorioso ao
longo de quarenta dias, não souberam interpretar bem aquela promessa
imponderável feita pela graça em seu interior, porque lhes faltava a descida do
Espírito Santo. Deduziram eles, equivocadamente, ter chegado a hora do triunfo
social de Cristo.
Conforme
crença comum entre os judeus, aguardavam eles a restauração da soberania
política de Israel, levada a uma nova plenitude em que, finalmente, o povo
eleito estivesse acima de todas as nações, sem precisar pagar impostos aos
romanos. E imaginavam Jesus como o rei ideal segundo essa perspectiva. Em
consequência, a divulgação do Evangelho, como Ele havia recomendado que
fizessem, seria feita ao mesmo tempo com a palavra nos lábios, a espada na mão
direita e uma bolsa na esquerda.
Cristo
reina por meio da Igreja
Com
efeito, é de se notar como, nessa ocasião, Ele não contradiz os discípulos, não
refuta de forma violenta seu anseio de um poderio ostensivo na face da terra.
Ao invés disso, lhes diz: “Não vos cabe saber os tempos e os momentos que o Pai
determinou com a sua própria autoridade” (At 1, 7). É uma clara alusão a que
algo na linha do que desejavam de fato se realizaria, mas no tempo estabelecido
pela vontade divina. Momentos, portanto, em que a onipotência de Deus tem de se
manifestar com todo o seu vigor na obra d’Ele chamada Santa Igreja Católica
Apostólica Romana, verificando-se os efeitos do preciosíssimo Sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo, de valor infinito, derramado no Calvário. Haverá então um
só rebanho, sob a égide de um só pastor, e a autoridade de Cristo se exercerá
de modo refulgente, inclusive com reflexos na vida social.
Essa
mesma perspectiva, descortinada pelo Senhor no dia de sua Ascensão, nós a
encontramos nos subsequentes versículos deste Evangelho:
18 Então Jesus
aproximou-Se e falou: “Toda a autoridade Me foi dada no Céu e sobre a terra”.
Tal
autoridade “no Céu e sobre a terra” Nosso Senhor a possui desde todos os
séculos, enquanto Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Filho Unigênito de
Deus. Porém, enquanto Homem Ele a recebeu por direito de conquista através do
sacrifício de sua Paixão e Morte, como observa São Jerônimo: “Foi dado o poder
Àquele que pouco antes havia sido crucificado, sepultado num túmulo, que jazia
morto e depois ressuscitou. Foi-Lhe dado o poder no Céu e na terra para que o
que antes reinava no Céu agora reine em toda a terra, por meio da fé dos que
creem”.4
O Reino que os Apóstolos esperavam haveria de se realizar no tempo "que o Pai fixou em seu poder" (At 1,7) |
Ensina
São Paulo que a própria criação, com a “esperança de ser também ela libertada
do cativeiro da corrupção, […] geme e sofre como que dores de parto” (Rm 8,
21-22), pois, se foi “sujeita à vaidade” (Rm 8, 20), também deve ser
beneficiada pela Redenção. Da mesma maneira, pode-se afirmar que a sociedade
civil, a qual está na base da espiritual e lhe oferece elementos, foi
fortemente atingida pelo pecado e precisa receber neste mundo – pois ela não
passará para a eternidade – a sua glória, pelos méritos do Salvador. A
assembleia celeste, todavia, formada pelos Santos, é perpétua e seu prêmio
consiste no convívio com Deus, na visão beatífica.
A
nós, como outrora aos discípulos, não nos “cabe saber os tempos e os momentos”,
mas temos certeza de que essa glorificação virá, pois Nosso Senhor possui pleno
domínio sobre todas as coisas e, por mais que os homens queiram impedir o
cumprimento de seus desígnios, Ele os realizará quando for de sua vontade.
A
necessidade de evangelizar
19 “Portanto, ide e
fazei discípulos meus todos os povos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e
do Espírito Santo, 20a e ensinando-os a observar tudo o que vos ordenei!”
Abandonando
o futuro nas mãos de Deus, o que deveriam fazer os Apóstolos? Pôr em prática a
recomendação de Jesus neste versículo, sem pensar em qualquer restauração
segundo seus critérios deturpados, preparando-se para serem testemunhas da
Boa-nova em todo o orbe, sem contar com qualquer recurso militar, político ou
financeiro, e sim com a força do Espírito Santo, como Ele lhes garantiu antes
de deixá-los: “descerá sobre vós, para serdes minhas testemunhas em Jerusalém,
em toda a Judeia e na Samaria, e até os confins da terra” (At 1, 8). Com este
irresistível poder eles começariam a divulgar os ensinamentos do Divino Mestre
e o Reino de Deus se implantaria de forma impalpável, muito mais através da fé
do que pelos meios concretos, tal como o grão de mostarda que, ao ser semeado,
vai se desenvolvendo quase imperceptivelmente até alcançar vigorosa expansão
(cf. Mt 13, 31-32).
Confusão entre a primeira e
a segunda vinda do Messias
20b “Eis que estarei
convosco todos os dias, até o fim do mundo”.
Jesus
em breve partiria para junto do Pai. Antes, porém, faz a promessa de permanecer
com os homens até a consumação dos tempos. São João Crisóstomo ressalta que Ele
aqui Se refere a todos os membros da Igreja, pois “não disse que estaria
somente com eles, mas também com todos os que creriam depois deles. […] O
Senhor fala com seus fiéis como a um só Corpo”.5 Além disso, comenta ainda o
Santo que Ele chama a atenção dos discípulos para “o fim do mundo, a fim de
atraí-los mais e para que não olhem apenas para as dificuldades presentes,
senão também para os bens vindouros, que não têm termo”.6
As palavras dos Anjos aos Apóstolos depois da Ascensão visavam esclarecer a confusão existente entre a primeira e a segunda vinda do Salvador |
Os Apóstolos, evidentemente, não podiam acompanhá-Lo na Ascensão, pois, quem tem forças para subir ao Céu, “senão aquele que desceu do Céu” (Jo 3, 13)? Entretanto, quando Ele desapareceu envolto em uma nuvem, aproximaram-se dois Anjos vestidos de branco e perguntaram: “Homens da Galileia, por que ficais aqui, parados, olhando para o Céu? Esse Jesus que vos foi levado para o Céu virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” (At 1, 11).
As palavras dos mensageiros celestes são muito expressivas, pois vinham confirmar as promessas de Jesus, abrindo a compreensão dos Onze para começarem a entender que a glória e o aparato desejado para o Messias, e para a instauração do Reino de Deus na terra, não correspondiam aos planos divinos naquela circunstância, e estavam reservados para o seu regresso. Na realidade, eles confundiam a segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo com a primeira, julgando que esta deveria ser pomposa, tonitruante, cheia de magnificência, brilho e esplendor. Não obstante, Ele nasce numa gruta, abraça a pobreza a ponto de não ter onde repousar a cabeça (cf. Mt 8, 20), e até os milagres que opera têm um caráter muito sereno, sem grandes ribombos, pois Ele não queria chamar demasiada atenção e até proibia, às vezes, que se fizesse propaganda deles (cf. Mt 12, 15-16; Mc 1, 43-44). Só na segunda vinda – em que “virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” – Se manifestará com imponência e majestade.
As palavras dos mensageiros celestes são muito expressivas, pois vinham confirmar as promessas de Jesus, abrindo a compreensão dos Onze para começarem a entender que a glória e o aparato desejado para o Messias, e para a instauração do Reino de Deus na terra, não correspondiam aos planos divinos naquela circunstância, e estavam reservados para o seu regresso. Na realidade, eles confundiam a segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo com a primeira, julgando que esta deveria ser pomposa, tonitruante, cheia de magnificência, brilho e esplendor. Não obstante, Ele nasce numa gruta, abraça a pobreza a ponto de não ter onde repousar a cabeça (cf. Mt 8, 20), e até os milagres que opera têm um caráter muito sereno, sem grandes ribombos, pois Ele não queria chamar demasiada atenção e até proibia, às vezes, que se fizesse propaganda deles (cf. Mt 12, 15-16; Mc 1, 43-44). Só na segunda vinda – em que “virá do mesmo modo como O vistes partir para o Céu” – Se manifestará com imponência e majestade.
Com
efeito, então o Rei dos reis descerá seguido pelo cortejo dos exércitos
celestes, montados em cavalos brancos e vestidos de linho de brancura
resplandecente (cf. Ap 19, 14). O Doutor Angélico defende a tese de que, antes
de chegar à terra, a meia altura, o Salvador será recebido por uma plêiade de
cojuízes que irão a seu encontro, como costumam fazer as autoridades de um
lugar quando acolhem outra de maior dignidade. São eles varões perfeitos,
escolhidos para julgar a humanidade junto com Ele, pois “neles estão contidos
os decretos da divina justiça”.7 Só depois, em meio a uma apoteose, será dado
início ao Juízo Final, que separará o trigo do joio (cf. Mt 13, 30), os da
direita dos da esquerda (cf. Mt 25, 33), e se concluirá com a subida dos bons
para o Céu, na companhia do Filho de Deus, enquanto os maus serão precipitados
nas trevas.
III – A ASCENSÃO DO SENHOR, PENHOR DA NOSSA
Aquele
que hoje Se eleva aos Céus é o mesmo que foi humilhado, açoitado, coroado de
espinhos, crucificado entre dois ladrões e depositado num sepulcro. Seu Corpo
estava chagado da cabeça aos pés, tal como a respeito d’Ele profetizara o
salmista: “Sou um verme, não sou homem, […] poderia contar todos os meus ossos”
(Sl 21, 7.18); mas, antes de sua carne começar a sofrer a corrupção (cf. Sl 15,
10), ressuscitou-Se a Si próprio com seu poder divino,8 passou quarenta dias na
terra e voltou para o Pai.
São
Tomás se pergunta que força O teria feito subir, e explica que, sendo Ele a
Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, nesse instante exerceu sua onipotência,
pelo que a causa primeira foi sua virtude divina. Baseando-se também em Santo
Agostinho, acrescenta que, no momento da Ressurreição, a glória da Alma de
Cristo redundou na glorificação do Corpo, com seus atributos próprios, dentre
os quais a agilidade, que confere a capacidade de se movimentar segundo o
pensamento e o desejo, de maneira que onde está o espírito, lá esteja também o
corpo. Ora, não convinha que Ele permanecesse na terra, uma vez que ela é um
local de decomposição, e era preciso que seu Corpo imortal estivesse no lugar
apropriado, isto é, o Céu Empíreo. Assim, conclui o Santo Doutor, a segunda
causa de sua Ascensão, foi “pelo poder da Alma glorificada que movia o Corpo
como queria”.9
Uma
promessa feita a toda a humanidade
Nosso
Senhor Jesus Cristo alçou-Se por seu próprio poder, e teve a delicadeza de
deslocar-Se lentamente, ascendendo não à velocidade do pensamento, mas conforme
a admiração dos que presenciavam o milagre. Foi-Se distanciando com calma,
sorrindo e abençoando, até Se tornar um ponto cada vez menor e desaparecer. À
vista da exaltação do Mestre, todos os circunstantes transbordaram de alegria e
“voltaram para Jerusalém com grande júbilo” (Lc 24, 52).
Mostrando grande delicadeza, Nosso Senhor foi ascendendo numa velocidade própria a satisfazer a admiração dos seus discípulos A Ascensão de Nosso Senhor Museus Capitolinos, Roma |
Também
para nós a Ascensão é motivo de gozo, de esperança e de fé. Por quê? Usemos de
um exemplo para facilitar a compreensão deste mistério e sua implicação na
espiritualidade dos fiéis. Seria impossível, e até monstruoso, imaginar que no
dia de Páscoa só a Cabeça do Redentor voltasse à vida, enquanto seu Corpo
sagrado jazesse chagado no túmulo. Ressuscitando a Cabeça, também todo o Corpo
tinha de o fazer! Pois bem, a Igreja é o Corpo Místico de Cristo; e Ele,
ressuscitando como Cabeça da Igreja, dá aos batizados o penhor da ressurreição,
pois “cada um, de sua parte, é um dos seus membros” (I Cor 12, 27). O mesmo se
pode dizer da Ascensão: subindo aos Céus em Corpo e Alma, o Redentor concede a
garantia de nos conduzir à eternidade da mesma forma, pois “Ele é nossa Cabeça,
mister se faz que os membros vão para onde ela se dirigiu”.10 A este respeito
comenta São João Crisóstomo: “Observe-se que o Senhor nos faz ver suas
promessas. Havia prometido ressuscitar os corpos; ressuscitou-Se a Si mesmo dos
mortos e confirmou seus discípulos nesta fé, durante quarenta dias. Prometeu
que seremos arrebatados ao Céu, e também o provou por meio das obras”.11
Quando
o Filho de Deus assumiu nossa carne, quis Ele viver entre nós para dar o
exemplo da plenitude e da perfeição em todas as virtudes, atos e gestos que
devemos praticar, inclusive na nossa futura partida para o Céu, como esperamos.
A Ascensão do Senhor é, pois, para nós, um ponto de imitação. Como será, então,
a nossa?
De Deus
viemos, a Ele devemos retornar
No
Evangelho de São João encontramos as palavras do Divino Mestre que sintetizam a
trajetória de sua vida terrena, e devem também ser o resumo da nossa: “Saí do
Pai e vim ao mundo. Agora deixo o mundo e volto para junto do Pai” (Jo 16, 28).
Elas podem se aplicar com toda razão aos homens, pois nenhum de nós criou a
própria alma. Apenas o corpo foi formado pelo concurso dos pais – e mesmo estes
não o engendrariam sem a força de Deus –, mas a alma provém d’Ele, que a cria
no instante da concepção para que anime o corpo. Se fomos constituídos por
Deus, é preciso que nosso desenvolvimento se faça com vistas a este retorno a Ele,
como se deu com Jesus. Eis a extraordinária dignidade de nossa origem e de
nossa finalidade: Deus!
Fomos criados por Deus e para Ele devemos retornar Nosso Senhor tirando Adão e Eva do sepulcro Igreja de São Salvador em Chora, Istambul (Turquia) |
Glorificação
da natureza humana
A
Ascensão de Cristo é o preâmbulo do que nos aguarda, como Ele anunciou: “Vou
preparar-vos um lugar” (Jo 14, 2). Ao subir, abre para nós as portas do Céu e,
ao cântico dos Anjos, Se estabelece em seu trono ao lado do Pai, representando
toda a humanidade, como belamente entoamos nos versos do hino de Laudes desta
Solenidade: “Demos graças a tal defensor / que nos salva, que vida nos deu / e
consigo no Céu faz sentar-se / nosso corpo no trono de Deus”.12 De fato, no
momento em que a humanidade santíssima de Jesus Se assenta no “trono da
Majestade divina nos Céus” (Hb 8, 1) e recebe a glória devida, todo o gênero
humano é também elevado.
Sabemos,
todavia, que só no Juízo Final teremos essa glória, pois antes disso todos
morreremos e o corpo não será poupado da decomposição, servindo de alimento aos
vermes até se desfazer. Enquanto não o recuperarmos a alma estará, sob certo
aspecto, em estado de violência, como explica o Pe. Royo Marín: “Se é contrário
à natureza qualquer mutilação do corpo humano, […] é evidente que muito mais
contrário à natureza humana é que o corpo inteiro se destaque e se separe de
sua alma”.13 Contudo, o período que permeia entre o instante em que fechamos os
olhos para esta vida e o da ressurreição no último dia é ínfimo se comparado à
eternidade. No fim do mundo comprovaremos o extraordinário poder de Deus pois,
assim como criou nossa alma do nada, Ele reconstituirá os corpos a partir do
que deles ainda restar; e, se tivermos morrido em graça, os restituirá em
estado glorioso, para subirmos ao Céu tal como Nosso Senhor Jesus Cristo em sua
Ascensão, comemorada liturgicamente nesta Solenidade.
Ele
intercede por nós junto ao Pai
À
vista disso, a Oração do Dia adquire especial significado ao recordar que a
Ascensão do Senhor “já é a nossa vitória”.14 E prossegue: “Fazei-nos exultar de
alegria e fervorosa ação de graças, pois, membros de seu Corpo, somos chamados
na esperança a participar da sua glória”.15 Ele está sentado no trono de Deus,
à direita do Pai, como Intercessor, Mediador e Sacerdote, apresentando-Lhe sua
humanidade! Sem dúvida, basta-nos isto para obtermos tudo o que necessitamos. E
Ele não só oferece sua humanidade, como o faz depois de ter passado por todas
as vicissitudes de um corpo padecente, pela Paixão e pela Morte. O Pe.
Monsabré, célebre pregador dominicano, tece algumas considerações sobre este
tema: “Lá, Vós concluís a obra de nossa salvação. Lá, Vós fazeis um apelo à
nossa fé, à nossa esperança, ao nosso amor, às nossas adorações; lá, precursor
diligente e devotado, nos preparais um lugar, mostrando-nos a via que seguistes
e as gerações bem-aventuradas que haveis livrado do poder de satanás. Lá,
Pontífice misericordioso, Vós mostrais as vossas chagas e aplicais, em nosso
favor, os sofrimentos e os méritos de vossa Paixão e de vossa Morte; de lá,
derramais sobre nós todos os vossos dons. De lá, enfim, Vós vireis um dia, lei
subsistente e viva, Sabedoria Encarnada, Senhor de toda criatura, exemplar de
toda vida, plenitude de toda graça, de lá vireis, revestido de grande poder e
de grande majestade, para julgar os vivos e os mortos”.16
Deste
modo, temos ao lado do Pai alguém que participa de nossa natureza, de nossa
carne e de nossos ossos a advogar por nós, acompanhado por Maria Santíssima,
que sempre vela com incansável maternalidade pelos homens.
Peçamos
a Eles a graça de não serem tisnadas nossas almas pelas ilusões que levaram os
Apóstolos a procurarem uma felicidade meramente humana. Esteja nossa atenção
sempre voltada para as coisas do alto, buscando restituir a Deus tudo quanto
d’Ele recebemos ao longo da vida. E assim como estamos neste mundo para imitar
Nosso Senhor, que Se encarnou para ser o Modelo Supremo, assim também devemos
nós ser exemplo para os outros. Eis a verdadeira perspectiva neste estado de
prova: manter sempre a esperança de que, em determinado momento, estaremos em
corpo e alma nos Céus, num eterno e sublime convívio com e sublime convívio com
Deus!
1 Cf. CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. De
rejeitado a onipotente. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. N.18 (Jun., 2003);
p.6-11; Comentário ao Evangelho da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B,
no Volume III da coleção O inédito sobre os Evangelhos.
2 Cf. TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada.
Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.605.
3 SÃO RÁBANO MAURO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Matthæum, c.XXVIII, v.16-20.
4 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.IV
(22,41-28,20), c.28, n.64. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros
escritos. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.419.
5 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía XC, n.2. In:
Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC,
2007, v.II, p.729.
6 Idem, ibidem.
7 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl.,
q.89, a.1.
8 Cf. Idem, III, q.53, a.4.
9 Idem, q.57, a.3.
10 Idem, a.6.
11 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, apud SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.XXIV, v.50-53.
12 SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Hino de
Laudes. In: COMISSÃO EPISCOPAL DE TEXTOS LITÚRGICOS. Liturgia das Horas.
Petrópolis: Ave-Maria; Paulinas; Paulus; Vozes, 2000, v.II, p.830.
13 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la
salvación. 4.ed. Madrid: BAC, 1997, p.174.
14 SOLENIDADE DA ASCENSÃO DO SENHOR. Oração do
Dia. In: MISSAL ROMANO. Trad. portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil
realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica.
9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.313.
15 Idem, ibidem.
16 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le Triomphateur. In: Exposition du Dogme
Catholique. Vie de Jésus-Christ. Carême 1880. 9.ed. Paris: P. Lethielleux,
1903, v.VIII, p.327-329.
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