"Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância." (Jo 10,10) Basílica Nossa Senhora do Rosário - Caieiras (SP) |
Chamado à transcendência
por meio da beleza
As
celebrações litúrgicas, em especial a da Eucaristia, constituem o cerne da
experiência do transcendente. Elas englobam elementos humanos e divinos em uma
síntese de beleza que nos eleva a Deus.
Algo curioso ocorre quando
refletimos sobre os episódios da vida de Nosso Senhor relatados nos Evangelhos.
À medida que a narração se desdobra, eles começam a germinar em nosso espírito
e acabamos por perceber experimentalmente como tudo quanto Cristo fez na Terra,
há dois milênios, transcende a fronteira do tempo.
Com efeito, o Verbo
Encarnado não pregava apenas para as multidões que se comprimiam em torno d’Ele
nas aldeias da Judeia. As verdades sobrenaturais contidas nos seus adoráveis
ensinamentos apresentam-se atualmente a nós muito mais claras do que o foram
para os seus coetâneos. Assim acontece, por exemplo, quando lemos na Sagrada
Escritura: “Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10, 10)
ou “Eu estarei sempre convosco, até o fim do mundo” (Mt 28, 20).
Ora, é um dos elementos
essenciais da divina didática de Jesus servir-Se das realidades visíveis para
nos elevar às invisíveis. Apontando para os lírios do campo, Ele incitou os
cristãos de todas as eras a refletir sobre a providência amorosa de Deus. Sentou-Se
junto a um poço e falou de água viva… Partiu o pão e aludiu ao alimento da
alma…
Essa reversibilidade entre
a esfera temporal e a espiritual faz parte da vida cotidiana da Igreja. É nela
que os ritos do culto divino, especialmente a Celebração Eucarística, encontram
seu sentido e fundamento.
Harmoniosa sucessão de
palavras e signos
Analisemos, nessa
perspectiva, o que sucede ao entrarmos numa igreja para participar da Santa
Missa.
Logo na entrada,
mergulhamos a mão na água benta, fazemos o Sinal da Cruz e dobramos o joelho,
voltados para o tabernáculo. A seguir, acomodamo-nos num banco enquanto o órgão
inunda com seus melodiosos acordes o recinto sagrado e uma luz suave flui
através dos vitrais.
O sacerdote eleva o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor, tão presente na Santa Missa como quando caminhava pelas estradas da Galileia. |
E assim, na harmoniosa
sucessão de palavras e signos ditada pelas sagradas rubricas, a Celebração
Eucarística se desenvolve até o momento ápice da Consagração. Então, atuando em
nome do único e verdadeiro Sacerdote, o celebrante pronuncia sobre o pão e o
vinho a fórmula ensinada por Cristo e, em seguida, levanta alto o Corpo e o
Sangue de Nosso Senhor, tão presente ali como quando caminhou pelas estradas da
Galileia ou derramou seu Sangue no Calvário.
Os símbolos como ponte entre o espiritual e o corporal
O uso de signos materiais
na Liturgia permite criar uma sólida ponte entre o corporal e o espiritual, o
visível e o invisível, o humano e o divino.
Uma pequena quantidade de água é misturada ao vinho, representando a parte humana do sacrifício |
Logo, conclui o Doutor
Angélico, “o culto divino precisa usar de coisas corpóreas para que, por elas,
que são como sinais, a mente humana desperte para atos espirituais, mediante os
quais nos unimos com Deus”.3
Elas não são um fim, mas
sim um meio para tornar acessível o que é transcendente e convidar os fiéis a
uma atitude de admiração, entrega e gratidão. É por isso que se tem afirmado
ser a partir do homo simbolicus que se visualiza o homo religiosus.4
Riqueza de aspectos da Celebração Eucarística
Mas a linguagem simbólica,
ao alimentar com largueza o intelecto por meio de todos os sentidos,
principalmente da vista e do ouvido, não só põe o homem em contato com o
Absoluto, mas faz isso de modo atraente. Porque, ensina o Papa Bento XVI, “a
Liturgia, por sua natureza, possui uma tal variedade de níveis de comunicação,
que lhe permitem cativar o ser humano na sua totalidade”.5
Ora, sendo a celebração
litúrgica do Sacramento da Eucaristia ponto alto do culto cristão, os ritos que
a compõem são síntese e ápice da expressão religiosa nos seus mais diversos
aspectos. A conjugação de todos eles produz uma experiência ao mesmo tempo
artística e mística que nos convida a considerar o desenvolvimento da Santa
Missa em sua dupla dimensão estética e transcendente.
Cristo como centro da Liturgia
Uma primeira reflexão nos
leva a considerar mais de perto o centro em torno do qual se articulam esse
conjunto de palavras, silêncios, gestos e símbolos que compõem uma Celebração
Eucarística. Qual é sua essência? O que eles representam?
A resposta no-la dá o
Catecismo ao afirmar: “Pela Liturgia, Cristo, nosso Redentor e Sumo Sacerdote,
continua em sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa Redenção”.6
Uma comunidade reunida para um banquete
Ora, “além de ser obra de
Cristo, a Liturgia é também uma ação de sua Igreja. Ela realiza e manifesta a
Igreja como sinal visível da comunhão entre Deus e os homens por meio de
Cristo. Empenha os fiéis na vida nova da comunidade, implica uma participação
consciente, ativa e frutuosa de todos”.8
Nesse sentido podemos
afirmar ser a Celebração Eucarística uma oração social. O homem precisa do
apoio dos seus semelhantes, e a reunião e interação de uma comunidade de fiéis
é, em si mesma, um sinal sensível da relação invisível existente entre eles
como um corpo místico.
Cristo está presente na
comunidade em virtude de sua promessa: “Quando dois ou três estiverem reunidos
em meu nome, então estarei no meio deles” (Mt 18, 20). A verdadeira unidade,
pois, só é atingida com relação a um princípio mais elevado: “Somente […]
quando o homem tem um relacionamento correto com Deus é que todos os seus
outros relacionamentos – com seus semelhantes e sua conduta com o restante da
criação – podem estar em boa ordem”.9
A união que tem lugar
entre Deus e a alma no Sacrifício Eucarístico é espiritual, mas também física,
já que o homem é um composto de corpo e alma. O sacrifício é expresso por
sinais tangíveis, como uma refeição. A própria estrutura da Eucaristia emerge
de sua instituição por Cristo na Última Ceia, com sua ordem: “Fazei isto em
memória de Mim” (Lc 22, 19).
Compartilhar uma refeição
fortalece a unidade e harmonia entre os participantes. Com efeito, a palavra
latina convivium significa refeição, banquete. A Celebração Eucarística é por
excelência o sacrum convivium, no qual os fiéis compartem o Corpo e Sangue de
Cristo, tornando-se um n’Ele.
Microcosmos organizado de forma a elevar o espírito
O espaço em que a
Celebração Eucarística se desenvolve está ordenado de modo a facilitar essa
união da comunidade em Cristo.
Ao cruzar os umbrais do
templo, a pessoa é envolvida por um ambiente que procura tirá-la da rotina
cotidiana e fazê-la sentir-se na antessala do Paraíso. Ela entra num recinto
sagrado, isolado tanto quanto possível das banalidades do mundo exterior, num microcosmos
organizado de forma a elevar o espírito para os mistérios que vão ser
celebrados.10
Nossa Senhora do Bom Remédio Basílica Nossa Senhora do Rosário - Caieiras (SP) |
Assim, o lugar santo deve
estar em perfeita harmonia com as palavras, gestos e atos litúrgicos que
compõem a ação sagrada por excelência. A decoração, as vestimentas, os vasos
sagrados podem ser ricos ou simples, mas sempre dignos e adequados à elevada
função a qual se destinam.
Água, fogo, incenso
Dentre os elementos
cósmicos usados na Liturgia, talvez seja o fogo o mais rico em significado.
Ele representa para o
cristão a ação transformante do Espírito Santo, assim como o amor ou fervor
interior. Línguas de fogo pousaram sobre Maria e os Apóstolos no dia de
Pentecostes (cf. At 2, 3). Uma lâmpada de azeite se consome diante do
Santíssimo, em perene adoração. E velas ardem no altar durante a Missa. No
Sábado Santo, na bênção do fogo novo, o mais espiritual dos quatro elementos
como que renasce junto com Cristo Ressuscitado, a Luz do Mundo, o Sol que nunca
se põe. O Círio Pascal representa nosso Redentor e todas as outras velas
recebem dele a sua chama.
A água, por sua vez, em
oposição ao fogo, tem propriedades purificadoras e regeneradoras, e por isso o
celebrante a usa para limpar as mãos antes de iniciar a Oração Eucarística.
Fonte de vida no mundo material, é esse também seu simbolismo no Sacramento do
Batismo. Uma pequena quantidade de água é misturada ao vinho, representando a
parte humana do sacrifício, o sangue e a linfa que escorreram do lado de
Cristo, a união entre Cristo e a Igreja.11
Ligado ao fogo está, por
sua vez, o incenso. A fumaça perfumada que se evola simboliza a oração e é
sinal de honra para com as coisas e pessoas sagradas. Ele é usado em
momentos-chave: o início da Celebração, o anúncio do Evangelho, o Ofertório e a
Elevação da hóstia e do cálice após a Consagração.
Gestos e silêncio
Na Ars celebrandi, têm papel preeminente também os gestos do
celebrante, reforçando poderosamente as palavras por ele pronunciadas.
O simbolismo das mãos sacerdotais que se juntam representam a humildade de Nosso Senhor |
O silêncio na Liturgia não
é um interlúdio mudo e vazio, mas é conatural com a oração, a contemplação e a
abertura para o sobrenatural. Um período de silêncio marca um momento de
grandeza e solenidade, conforme demonstrado na narração da Liturgia celestial
do Apocalipse: “E quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, fez-se silêncio no Céu
por quase meia hora” (Ap 8, 1).
Ascensão gradual da alma rumo à união com Deus
Ora, não é só nos ritos e
gestos isolados que encontramos a dimensão simbólica da Celebração Eucarística.
Ela se revela também na sua própria estrutura, que os unifica num vibrante
contexto.
“A Liturgia tem uma
ligação intrínseca com a beleza”
Pela Liturgia, como vimos,
Cristo continua na Igreja, com ela e por ela, sua função sacerdotal. Desse
modo, “a beleza de uma Celebração Eucarística não depende essencialmente da
beleza da arquitetura, das imagens, dos ornatos, dos cânticos, das sagradas
vestes, da coreografia e das cores, mas antes de tudo da capacidade de
revelar-se o gesto de amor praticado por Jesus. Por meio dos gestos, das
palavras e das orações da Liturgia devemos reproduzir e fazer transparecer os
gestos, orações e palavras do Senhor Jesus”.15
Entretanto, sendo Ele “o
mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44, 3) e a Beleza em essência enquanto
Deus, a Liturgia está inseparavelmente vinculada à beleza, como claríssimamente
ensina o Papa Bento XVI na Exortação Apostólica pós-sinodal Sacramentum
Caritatis:
“A relação entre mistério
acreditado e mistério celebrado manifesta-se, de modo peculiar, no valor
teológico e litúrgico da beleza. De fato, a Liturgia, como aliás a revelação
cristã, tem uma ligação intrínseca com a beleza: é esplendor da verdade
(veritatis splendor). Na Liturgia, brilha o mistério pascal, pelo qual o
próprio Cristo nos atrai a Si e chama à comunhão. […]
“A verdadeira beleza é o
amor de Deus que nos foi definitivamente revelado no mistério pascal. A beleza
da Liturgia pertence a este mistério; é expressão excelsa da glória de Deus e,
de certa forma, constitui o Céu que desce à Terra. O memorial do sacrifício
redentor traz em si mesmo os traços daquela beleza de Jesus testemunhada por
Pedro, Tiago e João, quando o Mestre, a caminho de Jerusalém, quis transfigurar-Se
diante deles (cf. Mc 9, 2-7). Concluindo, a beleza não é um fator decorativo da
ação litúrgica, mas seu elemento constitutivo, enquanto atributo do próprio
Deus e da sua revelação. Tudo isto nos há de tornar conscientes da atenção que
se deve prestar à ação litúrgica para que brilhe segundo a sua própria
natureza”.16
O poder de atração da beleza
A beleza tem uma
capacidade única de atrair o espírito humano, muito mais do que as ideias ou as
doutrinas. E a Celebração Eucarística, em sua resplandecente conjugação de
estímulos visuais, sonoros e olfativos, é um eficaz instrumento para conduzir à
beleza suprema de Deus.
Primeira ordenação sacerdotal dos Arautos do Evangelho Basílica Nossa Senhora do Carmo - São Paulo (SP) |
A importância da beleza na
Liturgia, enquanto possante fator de conduzir as almas à beleza suprema de
Deus, pode ser facilmente notada no empenho do Papa Bento XVI em que se tenha o
máximo de cuidado na celebração dos atos litúrgicos: “Sem dúvida, a beleza dos
ritos nunca será bastante procurada, nem suficientemente cuidada nem assaz
elaborada, porque nada é demasiado belo para Deus, que é a Beleza infinita. As
nossas liturgias terrestres não poderão ser senão um pálido reflexo da liturgia
que se celebra na Jerusalém do Céu, ponto de chegada da nossa peregrinação na Terra.
Possam, porém, as nossas celebrações aproximar-se o mais possível dela,
permitindo-nos antegozá-la!”.18
Importância do esplendor e perfeição dos ritos no mundo de hoje
Embora submetidas a
alterações quanto à forma ao longo dos séculos, as celebrações litúrgicas, em
especial a da Eucaristia, constituem o cerne da experiência do transcendente.
Mesmo sem considerar os efeitos sobrenaturais produzidos pelo seu caráter
sacramental, a beleza, o simbolismo e a estrutura do culto divino outorgam-lhe
um papel fundamental na experiência humana, saciando o anseio da alma pela
verdade e pelo bem.
Ora, nesta época de
pragmatismo, mecanização e globalização, o esplendor e a perfeição na
realização dos ritos litúrgicos adquirem uma importância cada vez maior. Neles o
homem contemporâneo encontra como que um oásis de verum, bonum e pulcrum num
mundo tão desprovido de beleza.
Na Liturgia da Santa
Igreja, além das graças necessárias ao progresso da alma na virtude, o espírito
humano encontra incomparável alimento para o seu inato desejo do Absoluto,
porque no centro da beleza e misticismo atemporais da Liturgia, dando- lhe
estrutura e sentido, encontra-se a Beleza Eterna, Divina e Infinita. O próprio
Deus.
Notas:
1 SÃO TOMÁS DE
AQUINO. Suma Teológica, II- II, q.81, a.7, resp.
2 DIONÍSIO
AREOPAGITA. De ecclesiastica hierarchia .c.1, 2.
3 SÃO TOMÁS DE
AQUINO, op. cit., II-II, q.81, a.7, resp.
4 Cf. RIES, Julien.
Tratado de antropología de lo sagrado. Madrid: Trotta, 2005, p.9-14.
5 BENTO XVI.
Sacramentum caritatis, n.40.
6 CIC 1069
7 CONCÍLIO VATICANO
II. Sacrosanctum concilium, n.7.
8 CIC 1071.
9 RATZINGER, Joseph. The Spirit of the Liturgy. San Francisco:
Ignatius, 2000, p.21.
10 Cf. PASTRO,
Cláudio. O Deus da beleza: a educação através da beleza. São Paulo: Paulinas,
2008, p.69.
11 GARRIDO BONAÑO,
OSB, Manuel. Curso de Liturgia Romana. Madrid: BAC, 1961, p.326-327.
12 JOÃO PAULO II.
Carta Apostólica Mane nobiscum Domine, n.14.
13 Cf. ELLIOT,
Peter. Guía práctica de la liturgia. 4.ed. Pamplona: EUNSA, 2004, p.72.
14 Cf. ARBOLEDA
MORA, Carlos. Los alcances de la fe en la posmodernidad. In: Revista Lasallista
de Investigación. Corporación
Universitaria
Lasallista – Colombia. v.V. N.2 (jul.-dez., 2008); p.140. 15 MARINI, Piero.
Liturgia e Bellezza – Nobilis Pulchritudo.
Cidade do Vaticano:
LEC, 2005, p.79.
16 BENTO XVI.
Sacramentum caritatis, n.35.
17 PONTIFÍCIO
CONSELHO PARA A CULTURA. A “Via pulchritudinis”. Documento final da Assembleia
Plenária, 2006, II.3.
18 BENTO XVI.
Homilia na celebração das vésperas na Catedral de Notre Dame. Paris, 12/9/2008
(Revista Arautos do
Evangelho, Set/2011, n. 117, p, 18 à 23)
Nenhum comentário:
Postar um comentário